Ecovirada reproduz na íntegra o artigo de Luiz Marques, “O salto do aquecimento de 2023 nos introduz em ‘território desconhecido’?”, publicado no jornal da Unicamp em 26 de Março de 2024.
Em março de 2024, a Organização Meteorológica Mundial lançou seu relatório anual, The State of the Global Climate 2023 (doravante OMM 2023) confirmando oficialmente seu relatório provisório de outubro de 2023[1] e o que já fora antecipado pelas agências nacionais e europeia do clima, bem como pela literatura científica recente. Citemos e comentemos cinco dos pontos mais importantes desse relatório:[2]
O primeiro ponto refere-se, obviamente, ao aquecimento médio global em 2023: “A temperatura média global próxima à superfície em 2023 foi 1,45 ± 0,12 °C acima da média de 1850–1900” (OMM 2023). Isso, de janeiro a dezembro do ano passado. Segundo o Copernicus, a agência europeia do clima, a temperatura média superficial global, terrestre e marítima combinadas, dos doze meses entre março de 2023 e fevereiro de 2024 foi 1,56 oC mais quente do que a média do período pré-industrial (1850 – 1900) e a temperatura de fevereiro de 2024 foi 1,77 oC mais quente do que a da média dos meses de fevereiro nesse período de referência.[3] É possível, assim, que os 12 meses entre abril de 2023 e março de 2024 superem a marca de 1,56 oC e assim sucessivamente até que os efeitos do atual El Niño cessem ou diminuam.
O salto do aquecimento de 2023 nos introduz em “território desconhecido”?
O segundo ponto do relatório da OMM situa o aquecimento de 2023 em relação aos registros históricos do clima, iniciados por volta de 1850: “O ano de 2023 foi o ano mais quente no registro observacional de 174 anos, superando claramente os anos mais quentes anteriores. O aquecimento de 2016 atingiu 1,29 ± 0,12 °C (acima da média de 1850–1900) e o de 2020 atingiu 1,27 ± 0,13 °C. Os últimos nove anos, 2015–2023, foram os nove anos mais quentes já registrados. (…) A temperatura global média do decênio 2014 – 2023 é 1,20 ± 0,12°C acima da média de 1850 a 1900, o mais quente período de 10 anos já registrado” (OMM 2023).
Observou-se em 2023, portanto, um aumento no aquecimento médio global de quase 0,2 oC. No mesmo mês da publicação desse relatório da OMM, Gavin Schmidt, diretor do Goddard Institute for Space Studies (Nasa), publicou um artigo chamando a atenção para a excepcionalidade desse salto nos registros históricos do aquecimento. Já em seu título, o artigo diz a que vem: “Os modelos climáticos não podem explicar a gigantesca anomalia de calor de 2023. Podemos estar em território desconhecido” (uncharted territory).[4] O autor parte da constatação de que “nos últimos nove meses, as temperaturas médias da superfície terrestre e do mar ultrapassaram os recordes anteriores todos os meses em até 0,2 °C – uma margem enorme em escala planetária”. Para aquilatar quão enorme é efetivamente essa margem, basta lembrar que a taxa de aquecimento médio global entre 1970 e 2010 foi de 0,18 oC por década, o que já representava uma enorme aceleração, uma vez que a taxa de aquecimento entre 1920 e 1970 fora de 0,04 oC por década. Entende-se bem, nesse contexto, que Gavin Schmidt retome a hipótese de que o sistema climático pode ter entrado em “território desconhecido” (uncharted territory). Ele emprega essa expressão, contudo, com a máxima cautela, frisando que tudo ainda depende do comportamento do clima após o El Niño ainda em curso:
“Se a anomalia não se estabilizar até agosto – uma expectativa razoável baseada em eventos anteriores do El Niño – então o mundo estará em território desconhecido. Isto poderia implicar que o aquecimento do planeta já está alterando fundamentalmente a forma como o sistema climático funciona, muito mais cedo do que os cientistas previam. Poderá também significar que as inferências estatísticas baseadas em acontecimentos passados são menos fiáveis do que pensávamos, acrescentando mais incerteza às previsões sazonais de secas e padrões de precipitação”.
O termo “território desconhecido” no presente contexto alude aos mapas dos séculos XV e XVI que traziam a expressão terra incógnita para se referir às zonas ainda não mapeadas do planeta. Elefoi empregado ao menos desde 2022 por António Guterres, secretário-geral da ONU, que afirmou: “os impactos nocivos da mudança climática estão nos levando para territórios desconhecidos de destruição”.[5] O termo se tornou recorrente na comunidade científica e foi empregado, por exemplo, por William Ripple e colegas num artigo intitulado: “The 2023 state of the climate report: Entering uncharted territory”.[6] Na conclusão desse artigo, os autores afirmam: “Tememos o território desconhecido em que entramos agora. As condições vão se tornar muito angustiantes e potencialmente incontroláveis para grandes regiões do mundo”. Esse mesmo temor levou Gavin Schmidt a afirmar:
“É humilhante e um tanto preocupante admitir que nenhum ano confundiu mais as capacidades preditivas dos cientistas do clima do que 2023 (…) Espera-se uma tendência geral de aquecimento devido ao aumento das emissões de gases com efeito de estufa (GEE), mas este súbito aumento de calor excede em muito as previsões feitas por modelos climáticos estatísticos que se baseiam em observações anteriores”.
Seja como for, mais importante do que especular sobre a natureza do salto no aquecimento ocorrido no último ano e nos três meses de 2024, é entender que o último decênio foi o mais quente não apenas dos registros históricos (mensurações instrumentais), mas do inteiro Holoceno, os últimos 11.700 anos.[7] Além disso, se a fronteira do Holoceno foi irreversivelmente ultrapassada no segundo decênio do século, outra fronteira provavelmente já o foi também, ou está em vias de sê-lo, neste terceiro decênio, quando o aquecimento atual superou, ou está na iminência de superar, as mais altas temperaturas médias globais de um período de referência muito mais remoto: o Eemiano, o último período interglacial (130 mil a 115 mil anos atrás). Essa ultrapassagem começou a ser largamente admitida desde meados de 2023, inclusive pela ONU: “É oficial: a temperatura média global em julho de 2023 foi a mais alta já registrada e provavelmente a mais alta em pelo menos 120.000 anos”.[8] A ONU repercutia então o Copernicus, a agência europeia do clima, na voz de sua diretora adjunta, Samantha Burgess, a qual acabara de afirmar que “o planeta não esteve tão quente nos últimos 120.000 anos”.[9]
O aquecimento oceânico
O terceiro ponto a se ressaltar no relatório da OMM diz respeito ao aquecimento oceânico: “O calor armazenado nos oceanos (Ocean Heat Content, OHC) atingiu o seu nível mais alto no registro observacional de 65 anos. (…) Os 2.000 metros superiores do oceano continuaram a se aquecer em 2023. Esse aquecimento é irreversível nos próximos séculos e milênios. O calor armazenado no oceano em 2023 (…) excedeu o valor de 2022 em 13 ± 9 ZJ [ZJ = ZettaJoule, sendo que 1 ZJ = 10 J21], consistente com estimativas publicadas no início de 2024”. (OMM 2023)
Essas estimativas da OMM são, de fato, consistentes com as de um artigo publicado por Lijing Cheng e colegas,[10] que reporta dois valores para o calor armazenado nos oceanos (OHC), obtidos pelo Institute of Atmospheric Physics da Chinese Academy of Sciences (IAP/CAS) e pelo National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA). Para o IAP/CAS, o calor armazenado nos oceanos (OHC) em 2023 excedeu o de 2022 em 15 ±10 ZJ, e para o NOAA, o OHC de 2023 excedeu o de 2022 em 9 ± 5 ZJ.
É preciso entender bem a magnitude, em termos energéticos, dessas medidas dadas em Zetta Joules (ZJ). Para começar, 1 ZJ é igual a 10 Joules elevados a 21ª potência (1 Zj = 10 J21). Em termos mais concretos: (a) todo o consumo energético da humanidade durante um ano é atualmente da ordem de ½ Zetta Joule;[11] (b) o consumo energético da humanidade entre o início do Holoceno (11.700 anos atrás) e 1950 monta a 14 ZJ, e esse consumo entre 1950 e 2020, durante o Antropoceno, monta a 22 ZJ.[12] Bastaria isso para entender que desde 1950 vivemos em uma nova época geológica, o Antropoceno, malgrado as recalcitrâncias de certos geólogos (mas isso fica para outro artigo). O que importa aqui é sublinhar que o montante de energia absorvida pelos oceanos deu um salto imenso em 2023, em relação a 2022. Segundo a OMM, esse aumento do calor contido no oceano em 2023 corresponde no mínimo a oito vezes o consumo energético atual da humanidade (13 ± 9 ZJ).
Dito em outra escala, a de graus Celsius, em 2023 e mais ainda nos três primeiros meses de 2024, a temperatura média da superfície do mar (entre 60°S e 60°N) atingiu e superou pela primeira vez nos registros históricos 21 oC. Em 2024, esse limite foi superado desde meados de janeiro e tem se mantido acima desse patamar até 21 de março de 2024. A Figura 1 mostra as anomalias diárias da temperatura superficial dos oceanos (entre 60°S e 60°N) em relação à média dos anos 1982-2011.
Figura 1 – Temperatura média diária superficial do oceano entre 60oN e 60oS em graus Celsius, mostrando as temperaturas de 2023 (laranja), de 2024 até 21 de março (linha preta contínua) e a média dos anos 1982-2011 com dois intervalos de confiança para cima e para baixo (linhas pontilhadas). Fonte: ClimateReanalyzer a partir de dados da NOAA.
As temperaturas médias do período 1982-2011 atingiram no máximo 20,3 oC. Essas mesmas temperaturas em 2023 e 2024 atingem um pico de 21,2 oC, um aumento de quase 1 oC num intervalo de tempo absolutamente irrisório. Estamos em uma desenfreada aceleração do aquecimento. Confirma-o, mais uma vez, um trabalho publicado em 2023, mostrando que “a absorção de calor pelos oceanos acelerou dramaticamente desde a década de 1990, quase duplicando durante 2010-2020 em relação a 1990-2000”.[13]
Elevação do nível do mar
O quarto ponto a ser comentado nesse relatório da OMM refere-se à elevação do nível do mar: “Em 2023, o nível médio global do mar atingiu um nível recorde nos registros dos satélites (de 1993 até o presente), refletindo o aquecimento contínuo dos oceanos, bem como o derretimento de geleiras e mantos de gelo. A taxa de elevação média global do nível do mar nos últimos dez anos (2014–2023) mais do que duplicou em relação à primeira década de registros por satélites (1993–2002)” (OMM 2023).
A aceleração da elevação do nível do mar é um dos aspectos mais inequívocos e também uma das consequências mais dramáticas da aceleração do aquecimento. Segundo o Copernicus, “a taxa combinada de perda de gelo [da Groenlândia e da Antártida] mais do que triplicou desde a década de 1980, passando de uma perda de 120 km3 por ano na década de 1980, para uma perda de cerca de 460 km3 por ano na década de 2010. A perda dos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida foi de 11.000 km3 desde os anos 1970”.[14] A Figura 2 mostra a aceleração das taxas decenais de elevação do nível do mar entre janeiro de 1993 e dezembro de 2023.
Figura 2 – Evolução global do nível médio do mar entre janeiro de 1993 e dezembro de 2023 com base na altimetria de satélite. A área sombreada indica a incerteza. A tendência nesses 30 anos é de uma elevação 3,43 ±0,3 mm/ano. A aceleração é de 0,12 ±0,05 mm por ano e a curva é segmentada em três períodos, indicando três taxas crescentes de elevação média anual do nível do mar: (a) Janeiro de 1993 a Dezembro de 2002 (2,13 mm/ano); (b) Janeiro de 2003 a Dezembro de 2012 (3,33 mm / ano) e (c) Janeiro de 2014 a Dezembro de 2023 (4,77 mm / ano)
Fonte: World Meteorological Organization, State of the Global Climate 2023, Fig. 6
Mas é importante ter em conta que a elevação média anual de 4,77 mm / ano no decênio 2014-2023, obviamente já espetacular, não leva em conta a cauda final dessa curva decenal, já que se registra uma elevação de 7,6 mm em 2023, em relação a 2022.[15]
O aumento da insegurança alimentar e dos refugiados climáticos
O quinto e último ponto a ser comentado nesse riquíssimo relatório da OMM (outros serão oportunamente objeto de análise) diz respeito ao capítulo “Impactos socioeconômicos”, focado no aumento da insegurança alimentar e dos refugiados climáticos: “A segurança alimentar, os deslocamentos populacionais e os impactos nas populações vulneráveis continuam a ser uma preocupação crescente em 2023, com os perigos meteorológicos e climáticos exacerbando a situação em muitas partes do mundo. As condições meteorológicas e climáticas extremas continuaram a desencadear novos e prolongados deslocamentos em 2023 e aumentaram a vulnerabilidade de muitos que já haviam sido desenraizados por situações complexas e multicausais de conflito e violência. (…) Os eventos meteorológicos e climáticos extremos interagem e, em alguns casos, desencadeiam ou agravam situações relativas à segurança hídrica e alimentar, à mobilidade populacional e à degradação ambiental” (OMM 2023).
O relatório aborda aqui um dos efeitos mais imediatamente trágicos do aquecimento global. É importante sublinhar, desde logo, a advertência dos seus autores: os impactos mais visíveis da emergência climática, isto é, os picos de calor, furacões, secas, inundações, quebras de safras etc. estão apenas “exacerbando” a insegurança alimentar nas “populações vulneráveis”, vítimas de “situações complexas e multicausais de conflito e violência”. Por enquanto, apenas “em alguns casos”, esses impactos climáticos “desencadeiam” tais crises. O agravamento da insegurança alimentar e dos contingentes de refugiados se deve, de fato, à sinergia entre fatores climáticos, ambientais em geral, econômicos, políticos e ideológicos. Mas o clima tem se mostrado um fator cada vez mais relevante nesse contexto socioambiental. O Paquistão, que tem registrado temperaturas acima de 45 oC (54 oC em Turbat em 2017; 52 oC em Jacobabad em 2022), sofreu em 2022 inundações que submergiram cerca de um terço de sua área total, impondo deslocamentos de cerca de 50 milhões de pessoas e a perda de 18 mil km2 de suas terras agricultáveis. É difícil imaginar que as próximas crises meteorológicas e climáticas consintam a seu povo o tempo necessário para se recuperar da catástrofe de 2022. Como afirma o relatório da OMM:
“No Paquistão, as inundações das monções de 2022, que desencadearam a maior catástrofe de deslocação numa década, continuaram a ter impactos duradouros em 2023. As comunidades deslocadas ainda estavam se recuperando quando fortes chuvas atingiram alguns distritos em junho de 2023, causando doenças transmitidas pela água e por outros vetores”.
Em setembro de 2023, a tempestade Daniel inundou quase 3.000 hectares das principais terras agrícolas da parte oriental da Líbia. Além disso, essas tempestades provocaram o colapso de uma barragem, afetando o sistema de irrigação, danificando estradas e o sistema de armazenamento de cereais. Tem-se aqui um típico caso em que um evento climático exacerba uma situação criada na esfera política. Em 2011, em pleno Ramadan, a OTAN começou um bombardeio da Líbia que iria se prolongar por sete meses. A operação (intitulada “Operation Unified Protector”…) empreendeu 26 mil missões aéreas sobre a Líbia, incluindo mais de 9.600 missões de bombardeio. A destruição do país pela OTAN transgredia frontalmente uma resolução do Conselho de Segurança, a qual permitia apenas a proibição de uso do espaço aéreo do país pelas forças governamentais. Após assassinar seu ditador, Muammar al-Gaddafi, e matar e ferir um número indefinido de civis, jamais reconhecido pela OTAN (as estimativas são da ordem de milhares), o então chefe da OTAN, Anders Fogh Rasmussen proclamou numa conferência de imprensa conjunta em Trípoli com Mustafa Abdul-Jalil, apoiado pela OTAN: “Juntos, conseguimos. A Líbia está finalmente livre”. E, dirigindo-se aos presentes, concluiu: “Vocês agiram para mudar a sua história e o seu destino. Agimos para protegê-los”.[16] Desde essa invasão aérea e naval, instalou-se o caos na Líbia. Esse bombardeio é, como se sabe, o marco inicial de um estado crônico de anomia e de guerra civil. Não por acaso, como bem afirma o relatório, o país já se encontrava “em estado de crise alimentar e necessitava assistência externa em julho de 2023, antes das inundações” de setembro.
O aumento recente da insegurança alimentar se demonstra de modo particularmente cruel em seu aspecto mais extremo que é também a mais brutal e primitiva das causas de mortes e sofrimentos: o aumento da fome aguda e das mortes por inanição em escala global desde ao menos 2015, após décadas de progressos na diminuição da insegurança alimentar global. Essa sinergia é tanto mais evidente porque, como já dito, a fome resulta da conjugação de vários fatores, entre os quais se contam:
1. o aumento da desigualdade produzido pelo triunfo dos “mercados” sobre o modelo social-democrata herdado da história das conquistas sociais desde o século XIX, triunfo este que é a causa primeira e principal da pobreza extrema;
2. a escassez real de alimentos por quebras de safras decorrentes da destruição da natureza e da desestabilização do clima. Os casos do Brasil e da Argentina são exemplares, mas 2023 foi um ano de perda de produtividade agrícola em todos os continentes. E 2023 será em breve lembrado com saudades pelos agricultores;
3. a escassez artificial de alimentos, ou seja, a carestia causada pela especulação sobre os preços dos alimentos nos mercados futuros, o grau mais sórdido da patologia financeira que domina hoje a economia globalizada, pois os alimentos tornaram-se soft commodities, isto é, parte integrante do grande cassino a que se reduziu a economia global.
4. a escassez real de alimentos causada pela pandemia e pelas guerras.
É importante se deter um momento nesse último item, pois os senhores da guerra têm hoje, tal como no passado, usado a fome como uma arma nos genocídios e limpezas étnicas das populações civis. Alex de Waal, diretor da World Peace Foundation, escreveu em 2024 que as grandes fomes estão novamente crescendo, desmentindo seus prognósticos otimistas de 2016:[17]
“Eu estava errado. As grandes fomes estão de volta. Subestimei a determinação cruel de alguns senhores da guerra de empregar a morte por inanição (starvation) como uma arma. E superestimei o quanto os maiores doadores humanitários do mundo se importam com alimentar os famintos em zonas de conflito”.
“No mundo todo”, continua de Waal, “cerca de dois terços das pessoas reduzidas à fome vivem em zonas de guerra ou de violência, como o Sudão e Gaza, ou estão tentando fugir delas”. E o mundo dos ricos está cada vez mais indiferente a essa situação. Basta lembrar, sempre segundo Alex de Waal, que há cinco anos, os orçamentos de ajuda emergencial de parte dos países doadores respondiam por 60% dos apelos da ONU. Em 2023, eles caíram para 35%. Na realidade, os países ricos não são apenas indiferentes, são também, e sobretudo, os grandes responsáveis pela pobreza extrema dos países africanos, através da espoliação dos recursos desses países, de golpes de Estado, da venda de armas aos ditadores de plantão etc. No caso do genocídio em curso dos palestinos em Gaza, os EUA apenas confirmam mais uma vez sua invariável preferência pela guerra, enquanto as chamadas democracias europeias, por seu alinhamento, doravante automático, a Washington, perderam sua identidade histórica, sua prosperidade e, sobretudo, o último resquício de capital moral que ainda lhes restava.
Os dados da FAO para 2021, reportados no relatório da OMM, mostram contingentes maiores da humanidade reduzidos à situação de insegurança alimentar e de fome:[18]
- Cerca de 2,3 bilhões de pessoas no mundo sofriam de insegurança alimentar moderada ou grave, um aumento de 350 milhões em relação a 2019.
- Quase 924 milhões de pessoas (11,7% da população mundial) enfrentavam insegurança alimentar em níveis agudos, um aumento de 207 milhões em dois anos.
- As mulheres, como sempre, sofrem ainda mais: 31,9% das mulheres no mundo todo sofriam de insegurança alimentar moderada ou grave, em comparação com 27,6% dos homens e essa disparidade aumentou em 2021 em relação ao ano anterior.
- 45 milhões de crianças com menos de cinco anos sofriam de emaciação, a forma mais aguda de subnutrição, que aumenta o risco de morte das crianças em até 12 vezes. Além disso, 149 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade apresentavam atrasos no crescimento e desenvolvimento devido a uma falta crônica de nutrientes essenciais em suas dietas.
Entre 2016 e 2023, o número de pessoas necessitadas de auxílio emergencial para não morrerem de fome aumentou de 130 para 363 milhões, um salto de 180%. E essas estimativas não incluíam ainda a fome a que o governo de Israel está reduzindo os palestinos em sua ofensiva genocida.
Cerca de 90 milhões de pessoas estão agora sofrendo fome aguda na Etiópia, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Iêmen. Como lembra ainda Alex de Waal, “esses países, infelizmente, têm suas próprias histórias de escassez alimentar aguda, mas o mundo nunca presenciou todos esses países reduzidos à morte por inanição ao mesmo tempo”. No Brasil, a parcela de brasileiros sem recursos para se alimentar e/ou alimentar sua família aumentou de 30% em 2019 para 36% em 2021, “atingindo novo recorde da série iniciada em 2006”. Entre os 20% mais pobres, essa porcentagem saltou de 53% em 2019 para 75% em 2021, com impactos muito maiores entre a população feminina.[19] Isso não se deve, sabidamente, apenas à pandemia, mas também à regressão civilizacional trazida, sobretudo, por Temer e Bolsonaro.
É preciso, enfim, ressaltar que os países ricos estão cada vez mais indiferentes aos seus próprios famintos, pois a fome está doravante aumentando também nesses países, a começar pelo mais rico, os EUA. Segundo o United States Department of Agriculture (USDA), “em 2022, 44,2 milhões de pessoas viviam em agregados familiares vitimados por insegurança alimentar. Essas pessoas constituíam 13,5% da população civil não institucionalizada dos EUA e incluíam 30,8 milhões de adultos e 13,4 milhões de crianças”.[20] O avanço da fome nos EUA é sem precedentes em sua história recente, pois em 2021 o número de pessoas em agregados familiares vitimados por insegurança alimentar era de “apenas” 34 milhões. Houve, portanto, um aumento de mais de 30% na população com insegurança alimentar e um aumento de quase 45% na insegurança alimentar infantil, o pior resultado desde 2014.
Digamos, para concluir, que o relatório da OMM confirma mais uma vez o que ninguém mais ignora ou deveria ignorar: nos últimos dez anos, a economia globalizada tornou o planeta mais inóspito à vida. Por volta de 2030, a ultrapassagem do limite perigoso de um aquecimento médio global de 1,5 oC terá se tornado irreversível e nos próximos dois decênios, quando o aquecimento tiver atingido ou ultrapassado 2 oC, toda nossa energia e criatividade se consumirá na tarefa de apenas sobreviver. A civilização termo-fóssil que historicamente nos constituiu, e hoje ainda nos define, precisa ser superada e as duas condições primeiras para superá-la é a exigência incondicional de paz e um renascido entusiasmo pela ideia de que outro mundo é (ainda) possível.
26 MAR 2024
Autoria LUIZ MARQUES
Edição de Imagem ALEX CALIXTO
Fotografia CAPA DO STATE OF THE GLOBAL CLIMATE 2023
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
Notas
[1] Cf. World Meteorological Organization, Provisional State of the Global Climate 2023.
[2] Cf. World Meteorological Organization, State of the Global Climate 2023. WMO n. 1347
[3] Cf. Copernicus, “February 2024 was globally the warmest on record”. 5/III/2024: “The global-average temperature for the past twelve months (March 2023–February 2024) is (…) 1.56 °C above the 1850-1900 pre-industrial average. (…) The month was 1.77 °C warmer than an estimate of the February average for 1850-1900, the designated pre-industrial reference period”.
[4] Cf. Gavin Schmidt, “Climate models can’t explain 2023’s huge heat anomaly — we could be in uncharted territory”. Nature, 19/III/2024.
[5] Cf. “Climate change impacts ‘heading into uncharted territory’, warns UN chief”. UN News, 13/IX/2022: “The harmful impacts of climate change are taking us into ‘uncharted territories of destruction’”.
[6] Cf. William Ripple et al., “The 2023 state of the climate report: Entering uncharted territory”. BioScience, 24/X/2023.
[7] Cf. Shaun A. Marcott et al. “A Reconstruction of Regional and Global Temperature for the Past 11,300 Years”. Science, 339, 6124, 8/III/2013, pp. 1198-1201; Darrel S. Kaufman & Ellie Broadman, “Revisiting the Holocene global temperature conundrum”. Nature, 2023, 614, 13/II/2023, pp. 425-435.
[8] Cf. “It’s official: July 2023 was the warmest month ever recorded”. United Nations, 8/VIII/2023: “The global average temperature for July 2023 was the highest on record and likely for at least 120,000 years”.
[9] Cf. Samantha Burgess: “it has not been this warm for the last 120,000 years” (citada na nota precedente)
[10] Cf. Lijing Cheng et al., “New Record Ocean Temperatures and Related Climate Indicators in 2023”. Advances in Atmospheric Science, 2024.
[11] Cf. Zheng Lin, “Ocean temperatures helped make 2023 the hottest year ever recorded”. EurekAlert, AAAS, 11/I/2024.
[12] Cf. Jaia Syvitski et al., “Extraordinary human energy consumption and resultant geological impacts beginning around 1950 CE initiated the proposed Anthropocene Epoch”. Communications Earth & Environment, 1, 32, 2020: “Human energy expenditure in the Anthropocene, ~22 zetajoules (ZJ), exceeds that across the prior 11,700 years of the Holocene (~14.6 ZJ), largely through combustion of fossil fuels”.
[13] Cf. Zhi Li, Matthew H. England & Sjoerd Groeskamp, “Recent acceleration in global ocean heat accumulation by mode and intermediate waters”. Nature Communications, 14, 6888, 2023
[14] Cf. Copernicus Climate Change Service (C3S), “European State of the Climate Summary 2022”
[15] Cf. Phys.Org, “New analysis sees spike in 2023 global sea level due to El Niño”, 21/III/2024, a partir de dados da Nasa
[16] Cf. Karin Laub, “NATO ends victorious 7-month Libya campaign”. AP, 1/XI/2011.
[17] Cf. Alex de Waal, “I Said the Era of Famine Might Be Ending. I Was Wrong”. The New York Times, 9/III/2024: “I was wrong. Famines are back. I underestimated the cruel resolve of some war leaders to use starvation as a weapon. And I overestimated how much the world’s largest humanitarian donors cared about feeding the hungry in conflict zones”.
[18] Cf. FAO, IFAD, UNICEF, WFP & WHO, The State of Food Security and Nutrition in the World 2022. Roma, FAO.
[19] Cf. Marcelo Neri, “Insegurança Alimentar no Brasil: Pandemia, Tendências e Comparações Internacionais”. Rio de Janeiro, FGV Social, 2022.
[20] Cf. Matthew P. Rabbitt et al., “Household Food Security in the United States in 2022”. USDA, 2023: “In 2022, 44.2 million people lived in food-insecure households. They constituted 13.5 percent of the U.S. civilian noninstitutionalized population and included 30.8 million adults and 13.4 million children”