Como fazer para que os bancos não freiem a transição energética?

“Não sei se conhecem Gaël Giraud, economista e jesuíta. É de uma inteligência fulgurante. Vale a pena ler a entrevista, publicada originalmente no Corriere della Sera”, escreve Luiz Marques, professor livre-docente de História na UNICAMP, autor de Capitalismo e Colapso Ambiental (prêmio Jabuti) e O Decênio Decisivo, cuja segunda edição, de 2025, traz um prefácio tão lúcido quanto mobilizador de atos urgentes de transformação das bases econômicas e éticas do mundo. Para ler a entrevista de Giraud, clique aqui.

“Se o petróleo, o gás e o carvão fossem proibidos, os 11 maiores bancos da Europa iriam à falência. Eles estão cientes há anos […]”, escreve Giraud nessa mesma entrevista. E em seguida:

“Entre ações e empréstimos, eles investiram 95% de seus respectivos capitais em energias fósseis. No total 530 bilhões de euros. Se mudarmos para as energias renováveis, eles vão à falência. Não sabem o que fazer para se livrar desse lastro.”

Como, na entrevista, Giraud responde a esse desafio?

“Em 2009 a Comissão Europeia propôs que cada país criasse um bad bank, um banco dos títulos podres: ontem eram as hipotecas subprimes, hoje os combustíveis fósseis . Mas essa não é a solução correta, porque socializa o déficit: as instituições de crédito privado ganham, o Estado perde, o cidadão paga. A alternativa é o Banco Central Europeu atuar como bad bank. Não custaria nada a ninguém.”

Os bad banks estatais – que poderiam ser criados para comprar os investimentos dos bancos particulares em energia fóssil, assumindo a perda de valor de tais ativos financeiros – implicariam sacrifícios e custos elevados para a população de cada país, uma vez que os valores pagos pelos bad banks passariam a fazer parte do orçamento estatal e da dívida pública. Giraud propõe então que o Banco Central Europeu (BCE) compre mais barato tais ações (por exemplo por 80% de seu valor). O BCE pode produzir dinheiro a mais em casos de necessidade e ele não vai a falência, seu objetivo não é o lucro. Para entender bem a lógica de Giraud, assim como os argumentos de seus oponentes, seria necessário examinar melhor como age o Banco Central Europeu, o que foge à alçada deste pequeno artigo introdutório.

Continua Giraud naquela mesma entrevista: “Meus colegas franceses me chamaram de louco. Mas o Banco de Compensações Internacional, que reúne os bancos centrais de todo o mundo em Basileia, publicou um relatório em que concorda comigo. Alguns amigos do BCE dizem-me: ‘Tecnicamente é possível, mas politicamente não’. Temem o pânico nos mercados. No entanto, essa é a única maneira para que os bancos, limpos, financiem a transição ecológica.”

Sua proposta para resolver o problema de os bancos privados não terem condições de suportar financeiramente tal transição, pois seus investimentos baseiam-se em grandíssima parte em combustíveis fósseis, é também apresentada sumariamente num vídeo em francês, de pouco mais de 6 minutos: “A mensagem que todo mundo deveria ouvir em relação aos bancos“.

Ideais e atividade pública

Além de uma trajetória de vida muito interessante – apesar das fortes perdas humanas sofridas -, Gaël Giraud tem uma atividade pública, política e científica notável. Dirigente de pesquisa no prestigioso CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica) francês, “economista, matemático, teólogo, sacerdote, poliglota (fala sete idiomas), ex-conselheiro sombra do presidente socialista François Hollande [2012-1017], ex-economista-chefe e diretor executivo da Agência francesa de desenvolvimento (AFD) [2015-2019] fundada por Charles De Gaulle (único padre a administrar para o governo de Paris um orçamento de 8 bilhões de euros em favor dos países pobres), Gaël Giraud, 53 anos [55 em 2025], trabalhou em Wall Street de 1999 a 2003, enquanto estava a caminho de se tornar jesuíta.” (Tal descrição, de 2023, pode ser encontrada aqui. )

Dirigir a AFD, entre 2015 e 2019, permitiu-lhe colocar melhor “em prática uma das suas maiores convicções: ‘Podemos nos mexer a vida toda sem que nada se mova’, disse ao [jornal] La Croix no dia 06 de setembro de 2014. ‘Para evitar isso, é preciso falar às elites que têm a possibilidade de fazer evoluir a situação : políticos, empresários, banqueiros, funcionários do Bercy. No campo da transição ecológica ou das lógicas financeiras, a resistência mais forte vem da cúpula da pirâmide’.

Ao mesmo tempo, Giraud conviveu com crianças de rua na África, como se pode ler no mesmo artigo, de 04/02/2015, de onde proveio o trecho acima e também o que vem a seguir: “Além de seus trabalhos acadêmicos e suas incursões nas esferas políticas e econômicas, Gaël Giraud não chegaria à AFD sem experiência de campo. Ele realiza pontualmente viagens de estudo à África. [Quando] Recém diplomado, fez dois anos de cooperação no Chade, junto com crianças de rua.”

Vale aprofundar-se nas propostas desta pessoa para quem a inquietação filosófica e espiritual é interdependente de uma reflexão econômica altamente especializada e um engajamento político. A foto aqui postada provém de uma entrevista em que Gaël Giraud fala de sua preocupação e ideias ecológicas expressas no livro, escrito com Carlo Petrini, Il gusto di cambiare: la transizione ecologica come via per la felicità, e publicado em 2023, com prefácio do Papa Francisco. Nessa entrevista, Giraud refere-se inclusive à Amazônia! (aos 16 e poucos minutos do vídeo).

Desde 2022, porém, quando deu declarações controversas e foi também acusado de plágio (num evento pontual logo explicado e corrigido), toda a contribuição de Giraud ficou sob suspeição, senão em descrédito – útil, aliás, para os interesses questionados pelo padre economista . Que possamos considerar o que ele oferece de proveitoso e necessário para pensar os impasses cruciais do mundo de hoje.

Aliás, outra entrevista interessante que sintetiza bem o elo entre as propostas econômicas e os ideais de Giraud pode ser lida aqui (num link também sinalizado mais acima, a propósito dos bad banks).

Rosie Mehoudar, abril de 2025

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