A partir de 1970, os militares constroem a Transamazônica (BR-230), uma rodovia de 4.223 quilômetros, ligando Cabedelo, na Paraíba, a Lábrea, quase na divisa entre o Amazonas e o Acre. Em 9 de outubro de 1970, Emílio Garrastazu Médici descerra uma placa em que se lia: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr. Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”.
O impacto das estradas e da colonização que as segue é imenso. Elas degradam a floresta na forma das assim chamadas “espinhelas de peixe”, causando mudanças de temperatura, umidade e insolação, além de restringir o movimento dos animais e fragmentar seus habitats. Corredores de comercialização de madeira, da produção agropecuária e demais commodities, outras estradas destrutivas, sobretudo como vetores de desmatamento, continuam a rasgar a floresta, entre as quais a BR-319 (Manaus-Porto Velho) e a BR-163 (trecho Cuiabá-Santarém), prioridades do atual Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), digno herdeiro do Programa de Integração Nacional (PIN) da ditadura militar, como apontado pelo Instituto Envolverde (Cf. G. Vasconcelos, “Amazônia e os 3 mil km de rodovias asfaltadas pelo PAC”. Instituto Envolverde).
Apenas entre 2004 e 2007 a floresta foi rasgada por uma rede de 50 mil km de estradas, como mostra uma pesquisa do Imazon e do Imperial College de Londres, publicada em 2013 (Cf. Sadia E Ahmed et al., “Temporal patterns of road network development in the Brazilian Amazon”. Regional Environmental Change, 13, 5, X/2013, pp. 927-937). O que o slogan “A Amazônia é nossa” deixou em seu rastro foi o esfolamento, a fragmentação, a amputação e, num futuro não longínquo, a possível morte espontânea de um dos mais importantes alicerces da vida na Terra
(Luiz Marques)
Em Altamira (a 450 km em linha reta de Belém), outra megaobra estatal, a hidrelétrica Belo Monte, vem aprofundando impactos negativos na rodovia, como o encurralamento de populações indígenas e a aceleração do desmatamento. A ameaça de violência é permanente: em 13 de outubro passado, o secretário municipal do Meio Ambiente, Luiz Araújo, foi assassinado em circunstâncias ainda não esclarecidas.
Entre as duas pontas da rodovia, predominam na paisagem pastos subutilizados, intercalados por unidades de conservação e terras indígenas sob pressão de madeireiros e garimpeiros. As grandes queimadas continuam no período seco, e, com a exceção de urubus, é raro avistar um animal silvestre.
As cidades têm IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) abaixo da média do país e são dependentes de repasses federais. Todas sofrem de administração ineficiente, segundo o ranking de municípios da Folha (REM-F), incluindo Placas (a 691 km em linha reta de Belém), a última colocada.
A maioria sobrevive do comércio ilegal do ouro e da madeira, cujos lucros compensam os custos de extração em remotas áreas protegidas. O saque se beneficia da repressão esporádica –em duas semanas, a reportagem testemunhou apenas uma ação fiscalizatória.
“Aqui é o mundo da ilegalidade”, afirma a irmã franciscana Ângela Sauzen, que desde 1986 atua em favor de pequenos agricultores em Uruará (a 635 km em linha reta de Belém), onde até o prefeito é madeireiro. “Quem pode mais, domina.”
Com os cortes orçamentários, órgãos como a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) vêm diminuindo as suas ações na região. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem 52 servidores para cuidar de uma área pouco maior que o Paraná: 20,7 milhões de hectares, divididos em 21 unidades de conservação.
“Na Amazônia, o fiscal está em extinção, é uma espécie rara”, diz o chefe da Reserva Extrativista Médio Purus, José Maria de Oliveira, que dispõe de dois servidores para atender a uma área de 604 mil hectares (cerca de quatro vezes a área da cidade de São Paulo), 600 km de rios e 6.000 moradores.
Em meio ao desmatamento crescente, uma constatação comum de índios e fazendeiros é o aumento da temperatura e a diminuição das chuvas. “O sol está mais forte” foi uma das frases mais ouvidas ao longo estrada.
É uma época de extremos climáticos. Em Humaitá (distante 590 km em linha reta de Manaus), o rio Madeira registrou neste ano sua terceira pior seca desde o início da medição, em 1967. Dois anos atrás, a cidade foi submersa na maior enchente da história.
TRANSAMAZÔNICA
Tratores fazem terraplanagem em trecho da rodovia Transamazônica ainda em construção (Foto: Folhapress)
Mas a estrada também reserva surpresas mais agradáveis. À beira do rio Maici, os misteriosos índios pirahãs mantêm alguns dos mesmos hábitos relatados no primeiro contato com os brancos, há três séculos, e se recusam a aprender português.
Em Medicilândia (a cerca de 540 km de Belém, em linha reta), maior produtor de cacau do país, uma cooperativa que fabrica chocolate viu as perspectivas melhorarem após a recente pavimentação da Transamazônica até Altamira –uma viagem de 90 km que, antes disso, podia durar quatro dias por causa dos atoleiros.
Em reservas extrativistas, comunidades ribeirinhas têm superado os desafios logísticos e de financiamento para viver da exploração da floresta em pé por meio da castanha-do-pará e de outros produtos.
“A gente tem uma população que conseguiu construir coisas boas aqui”, diz Lucimar Souza, coordenadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) para a Transamazônica. “Se os projetos dialogassem com as pessoas da região, teríamos melhores resultados.”
As passagens aéreas dos repórteres Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida foram custeadas pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), por meio do Projeto Ford Movimentos Sociais e do Projeto Assentamentos Sustentáveis da Amazônia, financiado pelo Fundo Amazônia.