RECICLAGEM: ERA TUDO MENTIRA?

Há cerca de 6 anos, Alexander Clapp, jornalista especializado nos Balcãs e no Mediterrâneo Oriental, viajava de ônibus pela Romênia, quando campos inteiros cobertos de camadas e camadas de lixo plástico chamaram a sua atenção. Intrigado, logo ficou sabendo que o lixo vinha da Alemanha e da França, e que o seu destino era ser queimado em fábricas de cimento ou apodrecer até o fim dos tempos nos campos da Romênia.  Surpreso com essa descoberta, uma pergunta se impôs:  por que a Romênia, um dos países mais pobres da Europa, e com pouca capacidade de gestão de detritos, estava recebendo todo esse lixo plástico de países ricos, que costumam se gabar das suas preocupações e cuidados com o ambiente? Quanto mais Clapp pesquisava, mais sinistra se revelava a questão. Foi o início de uma grande investigação jornalística implacável e global, e de uma viagem pelo mundo que durou dois anos, seguindo detritos fétidos das lixeiras comunitárias até imensas pilhas de entulho na Turquia, Guatemala, Gana, Quênia, Indonésia… Não se tratava só da Europa, mas de um colossal fenômeno global e nada recente. 

RECICLAGEM: ERA TUDO MENTIRA?

 Foto: Martin Bernetti/AFP – Roupas descartadas no deserto do Atacama

FENÔMENO GLOBAL QUE DATA DOS ANOS 80

De fato a situação remonta ao final dos anos 80, quando milhares de toneladas de produtos químicos perigosos deixaram os Estados Unidos e a Europa para serem despejados em ravinas na África, em praias do Caribe, em pântanos da América Latina, em troca de dinheiro ou promessas de escolas e hospitais. Nações pobres pelo mundo, livres do imperialismo da década de 60, descobriram que estavam se transformando em depósitos de detritos. O presidente do Quênia de então introduziu o conceito de “imperialismo do lixo”. Países em desenvolvimento, indignados, se uniram e conseguiram aprovar um tratado em 1992, a Convenção de Basileia. Ratificado por quase todos os países do mundo (com exceção dos Estados Unidos), o tratado logo virou letra morta, e o lixo dos países ricos continuou, e continua, viajando por dezenas de milhares de quilômetros. Há 40 anos, o lixo descartado pelos cidadãos de metade do planeta – e pelos Estados Unidos mais do que qualquer outro país – carrega um segredo sujo: seu destino muitas vezes é terminar a milhares de quilômetros de distância, em países que não têm condições de lidar com ele. Os impactos do nosso consumo são transferidos para continentes distantes, paisagens intocadas e populações desprevenidas.

E a situação, hoje, é ainda pior do que nos anos 80. Então, se sabia que se desfazer do próprio lixo em países mais pobres é imoral. Hoje, o lixo sai disfarçado na linguagem da sustentabilidade:  o lixo que deixa o país é classificado como reciclado.

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Foto: @tamar.com.br

Em fevereiro de 2025, Alexander Clapp publicou o seu primeiro livro, Waste Wars: The Wild Afterlife of Your Trash (Guerras do Lixo: A Vida Secreta dos Resíduos que Descartamos) – um relato  da sua viagem por diversos países para entender essa realidade revelou cenários alarmantes.  Em Gana, eletrônicos descartados por empresas ocidentais são queimados por jovens trabalhadores, causando graves problemas de saúde devido à inalação de substâncias tóxicas. Na Indonésia, plásticos ocidentais são usados como combustível para fornos de tofu, contaminando a alimentação da população, e 365 toneladas seriam despejadas no mar a cada hora… No Quênia, plásticos são encontrados no estômago de mais da metade do gado urbano…  O elenco de horrores é longo: roupas descartadas em deserto do Chile, um navio de cruzeiro desmontado peça por peça em Bangladesh (materiais valiosos retirados e o resto enterrado), baterias de automóveis empilhadas em armazéns no México. Na Turquia, sempre segundo Clapp, entra um caminhão de plástico a cada 15 minutos, e biólogos marinhos monitoram a costa para identificar pilhas de plástico europeu descartado… No Vietnã e nas Filipinas, muitos plásticos passam por processos químicos de reciclagem que liberam toxinas e microplásticos nos ecossistemas locais.

Regular esse comércio é um desafio, já que ele movimenta bilhões de dólares e beneficia países ricos, permitindo que evitem lidar com seus próprios resíduos, e mantendo os consumidores ocidentais ignorantes quanto à dimensão da crise.

AS “GUERRAS DO LIXO”

As “guerras” mencionadas no título do livro Waste Wars (Guerras do Lixo), de Alexander Clapp, referem-se aos conflitos geopolíticos, econômicos e ambientais que envolvem a gestão global de resíduos. O autor mostra como o lixo se tornou um campo de disputa entre países ricos e pobres, corporações e governos, ativistas e criminosos. Essas “guerras” incluem:

  1. Disputas Internacionais pelo Destino do Lixo – A exportação de grandes quantidades de lixo para países em desenvolvimento gera tensões diplomáticas.
  2. Corrupção e Crime Organizado – A indústria do lixo movimenta bilhões de dólares e envolve redes criminosas que lucram com o descarte ilegal de resíduos perigosos em países vulneráveis. Em alguns casos, governos e empresas fecham os olhos para essas práticas.
  3. Impactos Socioambientais – As comunidades que recebem o lixo dos países ricos enfrentam degradação ambiental, problemas de saúde pública e exploração trabalhista. O livro explora como vilarejos inteiros na Ásia e na África vivem do processamento de resíduos ocidentais, muitas vezes em condições precárias.
  4. Narrativas Enganosas sobre Reciclagem – Os governos ocidentais afirmam estar reduzindo o lixo e reciclando mais, mas Clapp argumenta que isso é, em grande parte, um mito. Em vez de resolver o problema, os países ricos simplesmente terceirizam o impacto ambiental para outras regiões do mundo.

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Foto: Jasper Doest (@nationalgeographic.com.br). Cegonhas brancas procuram alimento em aterro na Espanha

EXISTE UMA SOLUÇÃO?

No geral, as “guerras do lixo” representam uma batalha global sobre quem deve lidar com as consequências do consumismo e do excesso de resíduos – uma disputa que reflete as desigualdades entre o Norte Global e o Sul Global. O problema precisaria ser resolvido pela raiz: reduzindo drasticamente a produção de plástico por meio de uma legislação global abrangente. Uma iniciativa liderada pela Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA) visava criar, até o final de 2024, um tratado internacional legalmente vinculante para enfrentar todo o ciclo de vida do plástico, desde a produção até o descarte e a reciclagem. Mas a quinta e última rodada de negociações, realizada em dezembro de 2024 em Busan, Coreia do Sul, terminou sem consenso entre os países participantes. Os principais países produtores de petróleo, principalmente Arábia Saudita e Rússia, apoiados por representantes da indústria petroquímica, defenderam que o tratado se concentrasse apenas na gestão de resíduos, evitando restrições à produção. Novos encontros estão previstos para 2025, ainda sem data marcada.

Apesar dessa e de inúmeras outras tentativas para limitar a produção de plásticos, e para encontrar um material biodegradável que o substitua (e possível de ser produzido em grande escala e a baixo custo), parece que estamos a anos luz da solução. E condenados a viver em um planeta, o nosso, invadido por plásticos e microplásticos em todos os seus mais ínfimos recantos, que incluem a água de rios e oceanos, o solo, os vegetais que ingerimos, as entranhas de animais terrestre e aquáticos, o ar que respiramos e até o nosso próprio corpo. De fato, os microplásticos já invadiram os nossos cérebros, o nosso sangue, o leite materno, o sêmen…   Cientistas investigam os males que os microplásticos podem causar ao organismo humano.

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Foto: @123ecos.com.be

Cidadãos conscientes, continuamos a tentar recusar, reduzir, reutilizar e reciclar os plásticos. E devemos seguir assim, mesmo sabendo que, quando tudo funciona perfeitamente, o plástico pode ser reciclado apenas duas vezes (sempre com o acréscimo de material novo), e que o seu fim será, apesar da reciclagem, que só adia o seu destino final, mais microplásticos. De fato, os 9,2 bilhões de toneladas de plástico produzidas entre 1950 e 2017, os outros milhōes de toneladas dos anos seguintes (só em 2020, foram 400 milhões) – todo esse plástico encontra-se ainda no meio ambiente. O plástico não desaparece completamente em termos ambientais — pelo menos, não nos tempos que compreendemos como humanos. Em vez disso, ele se fragmenta em pedaços cada vez menores, tornando-se microplásticos e, eventualmente, nanoplásticos, que permanecem no meio ambiente por centenas ou milhares de anos, dependendo do tipo de plástico e das condições a que é exposto.

Há outros livros sobre a questão do lixo plástico e sobre a poluição irreparável que ele causa. Ecovirada se propõe a continuar examinando esse assunto e a situação do Brasil como país produtor, consumidor, exportador e importador de lixo plástico.

Foto de abertura: Karepastock / Schutterstock.com (@reciclasampa.combr)

Veja também em EcoVirada:

Plástico – https://ecovirada.com.br/plastico/

Meteorologia do Plástico – https://ecovirada.com.br/metereologia-do-plastico/

A Grande Mancha de Lixo do Pacífico – https://ecovirada.com.br/a-grande-mancha-de-lixo-do-pacifico/

Maristela Jardim Gaudio. Abril, 2025.

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