População do Vale do Ribeira está livre de Tijuco Alto

Foto: Manifestação em Adrianópolis, em 2009, pedia o Ribeira livre de barragens. Irmão Ivo Fiuza dos Santos, da Eaacone, que faleceu em 2016, vinha à frente empunhando a faixa|Claudio Tavares-ISA

Ao repercutir esta reportagem do Instituto Socioambiental, Crisálida junta-se às comemorações por uma das mais significativas vitórias da sociedade organizada contra o rolo compressor e devastador das corporações de energia, no caso a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), pertencente ao Grupo Votorantim. Dado que a produção de alumínio requer muita energia elétrica, a CBA possui mais de 18 Usinas Hidroelétricas (veja-se o verbete da wikipedia sobre a CBA). A CBA é, assim, uma das grandes promotoras desse gênero de intervenção antrópica sobre o meio ambiente – as grandes hidrelétricas – cujas consequências catastróficas são cada vez mais conhecidas e inaceitáveis. Lembremos alguns desses impactos: deslocamento de populações humanas em relativo equilíbrio com seus habitats, alagamentos, desmatamento, hipóxia e diminuição da biodiversidade fluvial, colapso das populações de peixes, interrupção dos fluxos hídricos e dos fluxos de sedimentos (um rio é tanto um fluxo de água quanto de sedimentos), erosão a jusante, subsidência dos deltas, emissões imensas de metano (CH4), um gás de efeito estufa com potencial de aquecimento global muitas dezenas de vezes maior que o dióxido de carbono (CO2) no horizonte de tempo de 20 anos etc.

 Infelizmente, a preservação do rio Ribeira e a vitória da sociedade e da biosfera contra a CBA fazem ainda figura de exceção. A regra no Brasil permanece sendo a destruição da natureza e das comunidades humanas em proveito das corporações, tal como no caso emblemático da usina hidrelétrica de Belo Monte no Xingú. O paralelo entre Tijuco Alto e Belo Monte é evidente, pois ambas as inciativas nascem em grande parte da pressão das corporações eletro-intensivas do  alumínio. Como bem lembra Philip M. Fearnside, do INPA:

“30% da energia [de Belo Monte]  vai para a indústria de eletrointensivos, basicamente alumínio. (…) Belo Monte é apresentada como uma iniciativa contra o “apagão”. O brasileiro médio é levado a pensar que vai ficar sem ver TV se não forem feitas as hidrelétricas do Madeira, de Altamira, mas o país tem grande margem de flexibilidade. Tem toda essa energia sendo exportada, boa parte em forma de lingote de alumínio. (…) Ninguém quer fazer hidrelétrica nos Estados Unidos ou na Europa, para fazer alumínio. A solução é fazer isso na Amazônia, deixar os impactos aqui e os benefícios no Hemisfério Norte. (…)  No caso de Belo Monte está se deixando quase seco um trecho de mais de 100 km do Rio Xingu com 2 áreas indígenas e comunidades de ribeirinhos”. (“Belo Monte vai exportar empregos”. Entrevista concedida a Karina Ninni e publicada em O Estado de São Paulo, 11/IV/2011)

A vitória dessa que é a maior reserva dos remanescente residuais da Mata Atlântica não a livra, entretanto, de outras ameaças. Como se lerá abaixo, Benedito Alves da Silva, o Ditão, liderança do quilombo de Ivaporunduva, adverte: “É uma vitória e ao mesmo tempo tenho medo de que seja um golpe. O Ibama indefere Tijuco Alto, mas libera outros empreendimentos como a mineração”. É um temor mais que fundado. A voracidade devastadora do capitalismo, sistema econômico movido pela necessidade existencial de expansão e, portanto, de exploração ilimitada da natureza (reduzida pelo universo mental do capitalismo ao estatuto de “fator de produção”, à ideia de “recursos” naturais ou de “matéria-prima”), implica pressão constante das corporações sobre os ecossistemas ou sobre o que ainda resta deles.  De onde a necessidade de levarmos muito a sério o temor de Ditão e mantermos uma vigilância constante contra as próximas investidas.

Luiz Marques

Há poucos dias, o IBAMA cancelou o plano de construir no Ribeira a hidrelétrica de Tijuco Alto. Essa é uma vitória histórica para o meio ambiente, comunidades quilombolas, caiçaras, pequenos agricultores e ribeirinhos da região, que lutam há 28 anos pelos seus direitos e pela preservação do rio e das florestas do vale. O reservatório de Tijuco Alto, se construído, alagaria uma área de 56 quilômetros quadrados, onde hoje vivem 580 famílias, causando profundo impacto ambiental na região, que é simplesmente o maior remanescente de Mata Atlântica do mundo.

Foram 28 anos de resistência, de espera, de revezes. Mas no último dia 4/11, o Ibama sepultou, finalmente, a construção da usina hidrelétrica de Tijuco Alto que ameaçou por quase três décadas as comunidades quilombolas, de pequenos agricultores, ribeirinhos e caiçaras do Vale do Ribeira. Ao longo desses anos, as comunidades que seriam diretamente afetadas não desistiram de lutar, de protestar e se manifestar. Valeu a pena.

“É uma vitória e ao mesmo tempo tenho medo de que seja um golpe. O Ibama indefere Tijuco Alto, mas libera outros empreendimentos como a mineração”, diz Benedito Alves da Silva, o Ditão, liderança do quilombo de Ivaporunduva, um dos “resistentes” de primeira hora contra a usina. Mesmo assim, ele comemora a vitória. “Tudo valeu a pena para ouvirem a gente, as ocupações, as manifestações, a repressão da polícia. Parece que quem propõe essas coisas não têm noção dos problemas que vão gerar para as comunidades”.

Desde a década de 1990, o ISA acompanha a ameaça de projetos de hidrelétricas no Ribeira, tendo hospedado a partir de 2000 uma primeira campanha de mobilização e informação, promovida pelo movimento ambientalista e entidades sociais da região. Inicialmente, pelo inventário hidrelétrico de 1990 do governo de São Paulo, além de Tijuco Alto, projeto da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), haviam mais três previstas pela Cesp – Itaóca, Funil e Batatal. Mas só Tijuco Alto seguiu em frente e foi alvo de protestos durante quase três décadas. A concessão dada à CBA em 1988 expira em 2018 e a tentativa de renovação foi negada pelo Ibama em 2014. Agora com a inviabilidade ambiental da obra decretada, o projeto está sepultado.(Veja no final do texto a Linha do Tempo com a história de Tijuco Alto).

O despacho indeferindo a licença ambiental de Tijuco Alto, traz um breve histórico sobre o processo que começou a tramitar no Ibama em 2004. E cita a forte pressão popular contra a obra. Em agosto de 2016, o órgão reconheceu que a região é muito sensível quanto à presença de comunidades remanescentes de quilombos, que o site da Fundação Cultural Palmares indica a existência de nove comunidades em Adrianópolis mas que não se manifestou conclusivamente sobre o empreendimento no que se refere a elas.

Registra ainda que sua construção, no bioma Mata Atlântica, estava planejada para uma Área com Prioridade Extremamente Alta, de Importância Biológica Alta, de Prioridade de Ação Extremamente Alta, com muitas Áreas de Preservação Permanente (APPS) relevantes, e duas grutas, da Rocha e da Mina, que seriam inundadas, demonstrando que o empreendimento não se justifica do ponto de vista ambiental (leia aqui o despacho na íntegra).

Resistência sempre

A forte resistência, aliás, é a marca do movimento contra Tijuco Alto. “Depois de quase 30 anos de idas e vindas, a decisão do Ibama mostra que vale a pena lutar por uma causa justa, seja ela social, ambiental. Nesse tempo, a cada revés, as comunidades nunca desanimavam, seguiam em frente. Resistiram e foram resilientes aos percalços que não foram poucos”, avalia o deputado federal Nilto Tatto, que foi coordenador do Programa Vale do Ribeira, do ISA até o início de 2014, quando se candidatou à Câmara dos Deputados.

O líder Zé Rodrigues, do quilombo de Ivaporunduva e um dos fundadores do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab), considera que foi uma vitória bastante merecida, da população, do Moab, que queria isso há muitos anos. “Estamos vivos e com a certeza de que não haverá licenciamento”.Irmã Maria Sueli Berlanga, da Equipe de Articulação e Apoio às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), também fundadora do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab) é contundente. “Pelo menos uma vez na vida o Ibama teve coragem de tomar a decisão certa, foi sensível, ouviu o nosso grito de 28 anos. Espero que também indefira outros projetos que ameaçam o Vale do Ribeira como mineração e pequenas centrais hidrelétricas”, afirma. “Que o Ibama tome juízo”.

Quando o Moab comemorou 20 anos, em 2009, tanto Irmã Sueli quanto Zé Rodrigues consideraram dois grandes momentos na resistência contra Tijuco Alto: a caminhada na BR-116 em 2007 e a ocupação do Ibama em 2008 – veja na linha do tempo. Outro marco nessa luta foi a audiência pública do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) do Estado de São Paulo, realizada em 26 de maio de 1994, na sede da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e que durou 13 horas. “Foi um momento de enfrentamento fundamental para envolver as pessoas na luta e ganhar tempo para que o movimento se fortalecesse”, diz irmã Sueli.

De olho nas ameaças

“A extinção do processo de licenciamento é o melhor momento para refletir sobre nossos projetos, nossos rios e nossas comunidades”, afirma Osvaldo dos Santos, coordenador da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale). Santos, do quilombo Porto Velho, é um dos velhos “resistentes” contra Tijuco Alto. “A luta não pode parar nunca, a resistência tem de continuar. O Vale do Ribeira é um lugar de resistência seja contra barragens, seja contra mineração. Nossa força é a força da parceria. A resistência mostra que estamos prontos para a luta e que não podemos tirar os olhos das ameaças”. Zé Rodrigues faz coro. “A luta não terminou. Foi o primeiro passo. Esperamos que o Ibama veja também as PCHs previstas para o Ribeira”. Para Ditão, a história da resistência contra a construção da usina foi um aprendizado, ma lição de vida. “Se não houver luta não tem vitória”.

Chico Mandira, liderança do quilombo Mandira, em Cananeia, considera que foi uma grande vitória da população do Vale do Ribeira. “Essa foi a maior conquista que tivemos, uma vitória não só das comunidades mas das pessoas que se juntaram a nós, das ONGs”, avalia. “A gente vence qualquer batalha. Demora, mas chega”. Já Nilto Tatto destaca que a luta contra as barragens no Vale do Ribeira foi fundamental para o reconhecimento dos quilombos. “Mostrou para a sociedade brasileira o papel dessas comunidades na relação com a natureza, na manutenção da agrobiodiversidade. Essa visibilidade que eles adquiriram veio da mobilização constante contra Tijuco Alto. Jogou luz sobre outros direitos, facilitou a criação de uma cooperativa que comercializa os produtos das roças quilombolas. E contribuiu também com o movimento quilombola nacional”.

Proposta indecente

O reservatório de Tijuco Alto, se construído, alagaria uma área de 56 quilômetros quadrados, onde hoje vivem 580 famílias. O mapa abaixo mostra as quatro barragens previstas para o Rio Ribeira na década de 1990 incluindo Tijuco Alto.

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Depois de adquirir 379 imóveis rurais na década de 1990 fazendo pressão sobre os moradores, que uma decisão da Justiça Federal, interrompeu em 1997, em 2005, a CBA fez nova investida. Antes mesmo de ter aprovado um novo EIA/Rima, a empresa passou a promover reuniões com os moradores, propondo-se a reassentar 360 famílias em lotes agrícolas ou vilas rurais na região. De acordo com a proposta levada às comunidades, os proprietários poderiam aceitar a mudança ou simplesmente vender seu imóvel, ou ainda receber uma carta de crédito da CBA para adquirir nova propriedade onde desejassem. Já aos moradores não-proprietários, não restaria outra opção se não a do reassentamento proposto pela empresa.

Muitos dos que venderam suas terras na década de 1990, aproximadamente 228 famílias de meeiros, arrendatários, parceiros ou posseiros, terminaram engrossando o contingente de moradores de favelas da periferia de Curitiba, capital do Paraná. É o passivo ambiental deixado pela CBA. Os resultados foram desastrosos para o desenvolvimento do Vale do Ribeira que estancou nos lugares onde se previam as barragens. As terras compradas ficaram abandonadas e os que não venderam não quiseram investir em algo de futuro incerto. “Nesse tempo deixamos de fazer muita coisa nas nossas comunidades, sempre pensando na ameaça que Tijuco representava. Mas valeu a pena”, avalia Zé Rodrigues.

Trecho do Rio Ribeira de Iguape onde seria construída a usina de Tijuco Alto|Raul do Valle-ISAisa-ribeira-rioTrecho do Rio Ribeira de Iguape onde seria construída a usina de Tijuco Alto|Raul do Valle-ISA

Uma riqueza socioambiental para preservar

O Vale do Ribeira interliga o sudeste do Estado de São Paulo e o nordeste do Estado do Paraná e é o maior remanescente de Mata Atlântica do mundo. Contém mais de 2,1 milhões de hectares de florestas – equivalente a aproximadamente 21% dos remanescentes de Mata Atlântica de todo o País – 150 mil hectares de restingas e 17 mil de manguezais, todos em excelente estado de conservação. Parte desses ecossistemas estão protegidos por 43 Unidades de Conservação (UCs). A região abriga também um dos mais importantes patrimônios espeleológicos do Brasil. Há 24 unidades de conservação integral ou parcialmente inseridas no Vale do Ribeira, que tem 51% de sua área total legalmente protegida. Além de toda essa riqueza natural, o Vale do Ribeira também é a região com a maior concentração de comunidades remanescentes de quilombos de todo o Estado de São Paulo, algumas delas recentemente reconhecidas e tituladas pelo governo estadual. Vivem na região também caiçaras, índios, pescadores tradicionais e pequenos produtores rurais. Em 1999, uma parte da região foi declarada pela ONU Patrimônio Natural da Humanidade.

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