Os riscos climáticos e econômicos da destruição das florestas amazônicas

A ciência progride geometricamente e confirma muito do que se suspeitava em questões como as alterações climáticas, as consequências das emissões de carbono ou da redução da biodiversidade e também em relação ao ciclo hidrológico. Novas evidências mostram, sem sombra de dúvida, que a Amazônia funciona como o coração da América do Sul em relação a um dos recursos do qual a vida é diretamente dependente, ou seja, a água. E a notícia é que a destruição da floresta amazônica pode já ter passado do limite que permitiria a sua recuperação. Isto implica que, por falta de água, a economia de vários países da região pode ser drasticamente afetada num prazo provavelmente curto.

De 6 a 7 de agosto de 2.014 realizou-se em Lima, Peru, o III Encontro Pan Amazônico, organizado pela Articulação Regional Amazônica (ARA). O “prato forte” do evento foi uma exposição do Professor Antônio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) do Brasil, intitulado “O futuro climático da Amazônia”. O que ele explicou, de forma magistral e com a crueza de cirurgião num campo de batalha, foi tão impactante que a maioria dos que assistiram ficaram estarrecidos e com a sensação de que todos os nossos esforços passados para defender a Amazônia e a sua gente foram ridiculamente insuficientes e infrutíferos.

O que diz a ciência

“As correntes de umidade funcionam como artérias, circulando pela própria Amazônia e também em muito do resto da América do Sul, onde descarregam seu líquido vivificante”

Resumindo e integrando dezenas de artigos científicos das últimas duas décadas, Nobre explica que as florestas da Amazônia funcionam como uma bomba hidráulica, que eleva a água acumulada no solo e no subsolo até a atmosfera, onde esta umidade forma os chamados “rios voadores”, na verdade nuvens movidas por correntes de ar. As correntes de umidade funcionam como artérias, circulando pela própria Amazônia e também em muito do resto da América do Sul, onde descarregam seu líquido vivificante. Mas, devido ao desmatamento que já cobre mais de 20% da Amazônia e a degradação florestal que pode estar afetando uma área muito maior, a Amazônia já perdeu de 40% a 50% da sua capacidade de bombear e reciclar a água. É como se o coração de uma pessoa tivesse a metade de suas células mortas ou doentes e, portanto, não conseguisse mais impulsar o sangue pelo corpo todo. As partes do corpo que não recebem sangue ou que recebem menos e mais lentamente morrem. Isso é o que aguarda os pampas úmidos argentinos e as terras atualmente mais produtivas do sudeste e centro-oeste do Brasil, além da Cordilheira dos Andes do Peru, que assim terá menos água para irrigar os seus desertos costeiros.

A melhor prova do fato mencionado é a redução, já constatada nos últimos 30 anos, da precipitação pluvial na Amazônia, fato que está se acelerando. Além disso, como bem se sabe, até algumas décadas atrás, na Amazônia existiam apenas duas temporadas, o período chuvoso e o menos chuvoso. Hoje, a Amazônia passa de inundações catastróficas a secas tão radicais que até falta água. É outra prova de que o coração está falhando. Há outros fenômenos novos que agravam e complicam o problema, como os incêndios florestais que agora são rotineiros e o aumento da temperatura devido à mudança climática resultante da liberação de carbono para a atmosfera.

As funções da floresta3

“Nobre explica que a Amazônia gera o “clima amigo” na América do Sul e que desde já há algum tempo, como as evidências mostram, não consegue mais cumprir esse papel”

Explicar esses fatos passa por muitas descobertas científicas que Nobre simplifica e que para esta nota foram unidas em quatro grupos de fenômenos: (i) a capacidade de árvores para transferir, através da transpiração, enormes volumes de água para a atmosfera, onde o vapor é transportado e em parte exportado através de correntes de ar; (ii) a capacidade da floresta para reter a água e transformá-la em chuvas gentis, através da sua nucleação ou condensação mediante aerossóis que são exclusivos dela; (iii) a arquitetura da floresta e, especialmente, o seu dossel rugoso que reduz a velocidade dos ventos carregados de água, evitando os extremos; (iv) a função termorreguladora da floresta amazônica que permite a formação de um regime de ventos que, diferente de outros continentes, permite manter a umidade e fornecê-la a lugares que, sem isso, deveriam ser desérticos, evitando também os furacões e outros eventos climáticos violentos. Nobre explica que a Amazônia gera o “clima amigo” na América do Sul e que desde já há algum tempo, como as evidências mostram, não consegue mais cumprir esse papel.

Dados citados pelo autor ajudam a entender alguns desses processos. Por exemplo, ele estima que as árvores da floresta amazônica transpirem (90%) e evaporem (10%) cerca de 20 bilhões de toneladas de água por dia. Para comparar, basta lembrar que o rio Amazonas, o rio mais caudaloso do mundo e que recolhe toda a água da imensa bacia, despeja 17 bilhões de toneladas por dia. Ele compara cada árvore da floresta a um “gêiser de madeira” que eleva água do solo até mais de 50 metros e que dali o devolve ao ar de forma eficiente. Diga-se de passagem, neste ano foi descartado em definitivo o mito de que as árvores velhas não servem para nada, o que justificava a chamada exploração florestal sustentável. Está demonstrado que as árvores nunca param de crescer, e que quando mais velhas mais têm folhas novas para transferir a água à atmosfera e para reter carbono. Também se sabe agora que a floresta consegue regular sua transpiração, por exemplo, fazendo que as raízes mais profundas bombeiem mais água durante as secas e aumentem o número de folhas novas para transpirar.

As implicações destes resultados confirmam os pressupostos dos cientistas que há várias décadas publicaram livros com títulos então considerados alarmistas, como o de R. Goodland e H. S. Irving (“Amazon Jungle: Green Hell to Red Desert?”, 1975). Hoje, não há dúvida de que isso é possível. Pior, isso é provável. O relatório indica que uma das possibilidades é que, dado ao seu estado atual, a Amazônia pode encontrar um novo equilíbrio, com menos água, tornando-se savana como as da África, ou como aconteceu no chamado cerrado brasileiro. Neste caso, não haverá água de sobra para exportação. Outro cenário é que se as degradações da floresta e do ciclo hidrológico continuarem, a floresta se transforme de fato na figura do deserto vermelho.

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Este é um resumo extremamente simplificado e parcial da exposição de Nobre e das evidências já indiscutíveis que existem sobre o papel da floresta amazônica como provedora e reguladora de água, fato que permite ao Brasil e à Argentina serem considerados os celeiros do mundo. Ademais, como mencionado, a esta situação se soma tudo o que se sabe sobre o papel da Amazônia como uma reserva de estoques de carbono colossais em solos, subsolos e biomassa, cuja libertação por desmatamento e degradação, pode elevar significativamente a temperatura global. A combinação dos dois processos, ambos causados pela ocupação desordenada e abusiva da bacia amazônica, multiplicam a gravidade da situação e a torna mais iminente.

Os caminhos à frente

“Se as regiões mais ricas do continente se beneficiam da água que a Amazônia lhes brinda, os que vivem nelas são os que devem pagar por continuar recebendo o serviço”

O que fazer? O cirurgião oferece uma resposta simples e contundente: Não cortar uma única árvore a mais, para não continuar destruindo o coração e, em segundo lugar, restaurar as partes que foram danificadas plantando árvores até reconstruir uma floresta que se assemelhe à que foi destruída. Dito de outra forma, há que se fazer um enxerto de tecido reabilitante. Isso não parece realista e não é mesmo, mas é a receita. Continuar ocupando e “desenvolvendo” a Amazônia mediante obras viárias, expansão da agricultura, exploração madeireira, mineração a céu aberto ou lagos artificiais só agravará a enfermidade. A consequência é que em uma década ou pouco mais, a economia das regiões atualmente mais prósperas da América do Sul vai decair. Isso terá um impacto nacional dramático e também afetará o continente e o mundo.

Então, o que fazer? O primeiro passo é, obviamente, que a sociedade torne-se ciente do problema, possa compreendê-lo bem e que esteja disposta a tomar decisões muito difíceis. Quiçá ajude a explicar as implicações da degradação do ciclo hidrológico regional na forma de bilhões de dólares anuais de perdas que serão incorridas por queda da produção agropecuária e de milhões de pessoas que serão deslocadas, ou que até passem fome. Isso pode estimular os tomadores de decisão a compreender a magnitude do desastre. Note-se que aqui não se fala de cuidar de passarinhos, nem de salvar onças ou tampouco de zelar pelos direitos dos povos indígenas. Nem mesmo se fala da manutenção de parques nacionais e de outras reservas naturais, que são importantes, mas que não resolvem o problema mencionado. Trata-se de preservar as florestas amazônicas para salvar a economia de um continente que é um dos principais celeiros do planeta.

Se as regiões mencionadas são as mais ricas do continente precisamente porque se beneficiam da água que a Amazônia lhes brinda, os que vivem nelas são os que devem pagar por continuar recebendo o serviço ou o benefício de chuvas regulares. Parte da solução é, portanto, a compensação financeira para todos os que, no nível da propriedade, da comunidade ou do município mantêm intactas as suas florestas, ou as melhoram e ampliam tal e como se propõe nos programas de desmatamento evitado para conter a mudança climática. No fundo, é o mesmo que também se propõe em nível de bacias para os que usam a água que se gera nas partes altas. Neste caso, a diferença é que as bacias são aéreas. Isso deve ser uma questão de negociação e convenções internacionais, regionais e nacionais como está acontecendo com a questão do carbono.

Parem as estradas

“É preciso diminuir ou, melhor, deter completamente a expansão das estradas na Amazônia, porque elas são o principal vetor do desmatamento e da degradação”

Outros passos a tomar são bem conhecidos e têm sido sugeridos há muito tempo, mas não com a urgência imposta pelos novos dados. É preciso diminuir ou, melhor, deter completamente a expansão das estradas na Amazônia, porque elas são o principal vetor do desmatamento e da degradação. A expansão agrícola deve ser vertical e não horizontal. Ou seja, em vez de se abrir floresta para novas culturas deve-se promover a intensificação do uso da terra que já foi desmatada. Mas seria melhor se nem isso fosse necessário. Nenhum tipo de exploração florestal de mata nativa deve ser permitido. A madeira deve ser produzida a partir de plantações e do manejo florestal secundário. E mesmo nesse caso, deve-se levar em conta que plantações de eucalipto, pinheiro tropical ou dendê não substituem o papel das florestas naturais, embora sejam melhor do que as pastagens ou o cultivo agrícola. Até a agrossilvicultura deve ser revisada e limitada estritamente ao plantio de mais árvores onde há poucas ou não há mais.

Em troca, os habitantes da Amazônia receberiam um pagamento em dinheiro por hectare preservado. Assim, proteger a floresta seria um negócio como qualquer outro, onde uma parte vende água e evita emissões de carbono, enquanto outra paga por esses bens ou serviços. A Amazônia também poderia se beneficiar com o aumento do turismo e de atividades recreativas onde existem atrativos ou condições apropriadas. Assim mesmo, sob condições estritas de não cortar árvores nem destruí-las por contaminação. Sob a mesma condição, poderia continuar existindo a exploração de petróleo, gás e até algumas modalidades de mineração. Enquanto controlada, também pode continuar a prática da coleta de produtos florestais não madeireiros, incluindo substâncias químicas. O manejo sustentável dos recursos faunísticos e aquáticos poderia ser feito. Sem dúvida, nestas condições, outras maneiras de usar as florestas da Amazônia sem destruí-las seriam descobertas. Os problemas geram as suas soluções.

Outra vez… Isso parece impossível? Conhecendo a realidade do Brasil e dos outros países amazônicos, não cabe muito otimismo de que semelhante revolução na visão e na prática do desenvolvimento amazônico seja possível. Menos ainda de que se tomem essas medidas e que sejam aplicadas a tempo de deter a enfermidade que já está avançada. O coração da América do Sul está infartado. Basta mencionar que São Paulo, a maior cidade do subcontinente, hoje raciona água. E a causa é a que foi mencionada aqui. Mas se os milhões de cidadãos da cidade mais rica e importante do Brasil compreenderem que a falta de chuva que seca seus reservatórios é culpa deles mesmos e dos seus concidadãos por fazer ou permitir a destruição da Amazônia, quiçá se inicie um movimento que pode mudar o futuro.

Por Marc Dourojeanni, via EcoDebate.

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