O nacionalismo de direita e  a era da desglobalização

Foto: Ria Novost/ AFP: Não dá para falar de crescimento ilimitado com a biosfera no limite

Crisálida repercute a análise de Antonio Luiz M.C. Costa sobre a crise da globalização e sobre seus malefícios socioambientais. Há vários trabalhos científicos mostrando o vínculo umbilical entre os principais desequilíbrios do sistema Terra, notadamente as mudanças climáticas e a degradação da biosfera, e a expansão do comércio global a partir dos anos 1980. Já em 2012, a revista Nature publicou um trabalho coordenado por Manfred Lenzen, da University of Sidney, Austrália, demonstrando os impactos da globalização sobre a biosfera: “na economia atual crescentemente globalizada”, afirma o trabalho, “as cadeias do comércio internacional aceleram a degradação de habitats muito distantes do lugar do consumo. (…) Mostramos aqui que um número significativo de espécies estão ameaçados pelo comércio internacional ao longo de rotas complexas e que, em particular, os consumidores dos países desenvolvidos causam ameaças a espécies por sua demanda de commodities produzidas, em última instância, em países em desenvolvimento. Vinculamos os registros de 25 mil espécies animais ameaçadas na Lista Vermelha da IUCN a mais de 15.000 commodities produzidas em 187 países e avaliamos mais de 5 bilhões de cadeias de suprimentos em termos de seus impactos sobre a biodiversidade. Excluindo espécies invasivas, encontramos que 30% das ameaças globais a espécies decorrem do comércio internacional”.

(Cf. LENZEN, M. et al., “International trade drives biodiversity threats in developing nations”. Nature, 486, 7/VI/2012, pp. 109-112: Human activities are causing Earth’s sixth major extinction event1—an accelerating decline of the world’s stocks of biological diversity at rates 100 to 1,000 times pre-human levels2. Historically, low-impact intrusion into species habitats arose from local demands for food, fuel and living space3. However, in today’s increasingly globalized economy, international trade chains accelerate habitat degradation far removed from the place of consumption. Although adverse effects of economic prosperity and economic inequality have been confirmed4, 5, the importance of international trade as a driver of threats to species is poorly understood. Here we show that a significant number of species are threatened as a result of international trade along complex routes, and that, in particular, consumers in developed countries cause threats to species through their demand of commodities that are ultimately produced in developing countries. We linked 25,000 Animalia species threat records from the International Union for Conservation of Nature Red List to more than 15,000 commodities produced in 187 countries and evaluated more than 5billion supply chains in terms of their biodiversity impacts. Excluding invasive species, we found that 30% of global species threats are due to international trade. In many developed countries, the consumption of imported coffee, tea, sugar, textiles, fish and other manufactured items causes a biodiversity footprint that is larger abroad than at home. Our results emphasize the importance of examining biodiversity loss as a global systemic phenomenon, instead of looking at the degrading or polluting producers in isolation. We anticipate that our findings will facilitate better regulation, sustainable supply-chain certification and consumer product labelling).

 

As repetições do clichê “a globalização é irreversível”, mantra dos anos 1990, podem ser encontradas aos milhares com uma rápida pesquisa pelo Google. Mesmo seus críticos reunidos no Fórum Social Mundial recusavam ser tachados de “antiglobalização” e disseram buscar uma “mundialização alternativa”. Hoje, porém, o termo “desglobalização” ganha cada vez mais espaço, não como consequência temporária de um acidente de percurso como a crise de 2008, mas como uma força assertiva e talvez de longo prazo.

O Brexit de junho fez soar o sinal de alarme, mas a tendência é geral, como mostra a rejeição de ambos os principais candidatos presidenciais dos Estados Unidos ao Tratado Transpacífico, a ascensão da xenofobia e dos populismos reacionários na União Europeia e do nacionalismo na Rússia, Japão, Turquia e Filipinas.

A própria China, cuja abertura estimulou o crescimento mundial por muito tempo, entrou em novo ciclo, começa a voltar-se de novo para dentro, prioriza o consumo e o investimento interno e valoriza o legado do maoísmo. 

O volume do comércio internacional foi equivalente a 25% do produto mundial bruto nos anos 1960, 32% nos anos 1970, 38% nos anos 1980, 43% nos anos 1990, 55% nos anos 2000 e 60% na primeira década de 2010. Mas em 2016, o comércio internacional deve crescer menos que a economia mundial (1,7% ante 2,2%) sem nenhum evento catastrófico que o justifique.

Nas últimas décadas, isso só havia acontecido duas vezes, em 1982 como consequência do choque dos juros de Paul Volcker, e em 2001 com o estouro da bolha especulativa das pontocom e os atentados do 11 de Setembro.  

Segundo a Organização Mundial do Comércio, a desaceleração deve-se em 75% à queda do investimento internacional (por exemplo, menos capital ocidental em indústrias chinesas) e no restante ao crescimento do protecionismo. As tarifas sobre o comércio internacional haviam caído continuamente de 1985 a 2008, mas após a crise financeira se estabilizaram e nos últimos dois anos, sobretaxas e outras barreiras comerciais voltaram a aumentar. O fenômeno é anterior aos eventos políticos deste ano, que, provavelmente, o reforçarão.

A questão de fundo é a percepção de que, apesar dos smartphones, robôs e veículos autônomos, do Uber e do Airbnb, a produtividade das economias mais avançadas cresce muito pouco ou nada, o desemprego aumenta, a população envelhece e uma estagnação secular se consolida.

Se os países pobres ainda têm espaço para aumentar sua produtividade pela absorção de tecnologias industriais existentes, são percebidos como uma concorrência desleal. Se vivem a guerra ou o caos e expelem migrantes, são vistos como uma ameaça ainda maior.

Para que tenha plausibilidade, a fé inabalável dos economistas liberais na teoria das vantagens comparativas e o amor dos gurus da administração e da autoajuda pela ideologia do “jogo do ganha-ganha” dependem de uma percepção, se não de abundância concreta, ao menos de expectativas de crescimento a longo prazo.

Se esta falta, a economia é percebida como um jogo de soma zero e cada um tenta salvar o seu padrão de vida à custa dos demais. Como até os analistas de mercado financeiro descobrem depois de sobreviverem a um ou dois ciclos, com o mercado em alta, todo mundo é gênio, mas quando cai, vale a lei da selva. 

O próprio capitalismo depende de uma perspectiva de crescimento. Na Idade Média, a estagnação secular era a norma e os juros eram mera usura. Como explicava Tomás de Aquino, ao contrário de um rebanho ou de uma terra arrendada, o dinheiro não dava frutos.

Isso mudou um tanto de figura quando o capitalismo deixou de ser um fenômeno marginal mais ou menos tolerado para moldar a economia, a política e o pensamento. Teoria crítica à parte, do ponto de vista do capitalista o dinheiro parece frutificar e a perspectiva de crescimento justifica todo o sistema, a começar pelas taxas de juro. 

Dos séculos XVII ao XIX, não se divisavam limites ao crescimento, pois a nova sociedade se expandia pela conquista de um mundo ainda na maior parte pré-capitalista. Só no fim do século XX, quando eram completadas a partilha da África e a submissão da China, a questão começou a ser posta. “Penso nas estrelas que vemos à noite, esses vastos mundos que jamais poderemos atingir. Eu anexaria os planetas se pudesse. Entristece-me vê-los tão claramente e ao mesmo tempo tão distantes”, lamentava o colonialista Cecil Rhodes em 1895.

Teóricos marxistas radicais, como Rosa Luxemburgo e Vladimir Lenin, viram no fim das conquistas coloniais o prenúncio da estagnação do crescimento e do fim do capitalismo, depois do qual seria “socialismo ou barbárie”. Precipitaram-se, mas à sombra da Primeira Guerra Mundial e das crises dos anos 1920 e 1930, tais teses soavam plausíveis. 

Foi preciso o choque da Segunda Guerra Mundial e o desafio soviético para lançar um novo ciclo de crescimento, baseado menos no crescimento físico do capital industrial e mais no aumento intensivo de produtividade e consumo, graças à aplicação sistemática da ciência à produção, ao crescimento demográfico e à inclusão dos trabalhadores no consumo de lazer e bens duráveis, transformando-os em “classe média” do ponto de vista do marketing. A miragem do crescimento ilimitado tornou-se um dogma tão sólido quanto o do Juízo Final na Idade Média e com as missões Apollo, até a aspiração de anexar os planetas pareceu menos absurda. 

O colapso da União Soviética, a conversão parcial da China à economia de mercado e as privatizações dos anos 1990 reforçaram a ilusão e reabriram ao capital os poucos espaços que lhe haviam sido negados e encorajou as elites a rasgar os pactos sociais dos anos dourados.

As inovações da informática inspiraram a fé em um crescimento não só infinito, como cada vez mais rápido. Seus apóstolos mais fervorosos profetizaram um crescimento de dez vezes no valor das ações até 2020 (“Dow 100.000”), a quarta revolução industrial e a “singularidade”, um salto inconcebível no desenvolvimento, a partir dos anos 2030 ou 2040.

Em vez disso, a virada do milênio trouxe a austeridade e a asfixia do consumo e do investimento. Com expansão, o aumento do lucro e da concentração de renda que resulta da globalização não implicaria empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas com crescimento baixo, significa desemprego e salários mais baixos. O “populismo”, o que em liberalês é sinônimo de qualquer tese alternativa ao liberalismo, torna-se inescapável.  E na falta de uma esquerda radical consistente, só resta o populismo de direita.

Com a crise financeira, as nações ricas atolaram-se no mesmo pântano de estagnação crônica no qual o Japão está preso desde fins dos anos 1980. Ainda mais importante, a deterioração ambiental, a mudança climática e a extinção em massa atingiram patamares nos quais não podem mais ser ignorados.

Mesmo que os entraves sociais e financeiros sejam superados, haverá o limite da biosfera. Sonhos como a substituição total dos combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia e a reciclagem total de matérias-primas são necessários não para o crescimento, mas para a construção de um caminho para a sobrevivência para além de mais uma ou duas gerações. É preciso correr para ficar no mesmo lugar. 

O mundo econômico não é plano, mas é finito e a beirada não está longe. Pode (ou deveria) haver espaço para países pobres alcançar a qualidade de vida das nações mais afortunadas, mas não para o crescimento ilimitado. Nessas condições, as expectativas que sustentam a lógica do capitalismo liberal perdem a credibilidade.

Como justificar a própria existência dos juros e os cálculos de valor presente sem expectativa de crescimento? Hoje, o fato de a maioria dos países ricos ter juro básico real (e até nominal) nulo ou negativo com inflação baixa é visto como uma anomalia temporária, mas talvez seja apenas o novo normal. Anormal é esperar que, nessas condições, a economia e a política continuem a funcionar como antes. 

Um mundo sem crescimento é um mundo no qual se torna senso comum que só é possível progredir (se não apenas sobreviver) à custa de outros. Podem-se esperar pressões crescentes pela proteção de produtos, empregos e empresas locais e para bloquear o movimento de imigrantes.

Sem a contribuição desses, torna-se ainda mais difícil sustentar o que resta de Estado social, principalmente em nações em vias de envelhecimento. Conflitos internacionais se tornarão cada vez mais intensos e difíceis de moderar. A luta de classes torna-se mais explícita e, eventualmente, servirá de pretexto a regimes mais autoritários.

Os EUA, que nos anos 1940 tinham interesse em liquidar o fascismo e desbloquear o crescimento mundial para enfrentar o comunismo, agora são apenas uma potência a mais a tentar garantir o seu pirão primeiro. E mesmo que não fosse, também não tem resposta à questão ecológica. 

Já vimos este filme antes, mas desta vez a cavalaria está do outro lado e não adianta pedir socorro aos índios, pois nem eles sabem como sobreviver em um mundo como este que estamos criando. A tirada de Slavoj Zizek em 2011, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, deixa de se referir à ficção e ganha conotações cada vez mais sinistras. 

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