O Brasil importa lixo

No capítulo “Um planeta entulhado”, do livro O Decênio Decisivo (Luiz Marques, 2023), lê-se que, no século XX, a geração de lixo decuplicou e que, nestes primeiros 25 anos do século XXI, o número deverá dobrar.

A economia circular é um modelo econômico que busca reduzir desperdícios e aproveitar recursos. Em vez de extrair, usar e descartar (modelo linear), ela propõe reciclar, reutilizar e recuperar materiais, fechando o ciclo de produção para prolongar a vida útil dos produtos e proteger o meio ambiente. Em 2020, a economia global era apenas 8,9% circular. 

Um estudo publicado pela prestigiosa revista The Lancet, em 4 de Outubro deste ano, aponta que a produção de plástico cresceu 237 vezes desde 1950. Um outro estudo de 2020 afirma que a produção de polímeros chegará a 550 milhões de toneladas em 2035. O número parece alto, altíssimo, e é ainda mais impressionante se pensarmos que corresponde aproximadamente ao peso de toda a humanidade (uma população de mais de 8 bilhões, peso médio de 60/62 kg por pessoa…).  

De todo o plástico já produzido no mundo, apenas 9% foram reciclados. Do restante, 12% foram incinerados e 79% dispersos nos mais variados ambientes. E não há consenso, apesar dos inúmeros encontros na ONU, sobre como reduzir a produção mundial.

Reciclagem é solução?

O mesmo estudo da revista Lancet mencionado acima, afirma que está claro que o mundo não conseguirá sair da crise da poluição plástica por meio da reciclagem. O estudo foi publicado dias antes da retomada das negociações entre 184 países, na sede da ONU, em Genebra, para limitar a produção de plásticos. Mas não houve consenso, e as negociações foram encerradas em 15 de agosto. Nenhum acordo foi assinado.

Afirmar que a reciclagem não vai resolver o problema global da poluição por plásticos não deve ser razão para não mais fazer a coleta seletiva. Reciclar, diminuir a produção (e o consumo) é fundamental. Atualmente, um volume que equivale a um caminhão de lixo plástico é lançado nos oceanos a cada minuto (oito milhões de toneladas por ano).

Importação de resíduos pelo Brasil

O Brasil importa lixo

Há muito anos o Brasil importa resíduos recicláveis de outros países. O material vem principalmente dos Estados Unidos, da China e de vários países da América Latina, sob a forma de papel, plástico, vidro e metais. Os números variam a cada ano, mas os volumes são relevantes: entre 2017 e 2024, o Brasil importou centenas de milhares de toneladas de resíduos, sobretudo de plástico, papel, sucata metálica e vidro. Só em 2024 foram 44 mil toneladas.

O principal argumento favorável à prática é econômico. Os materiais importados seriam matéria prima para novos produtos. Algumas indústrias brasileiras alegam precisar importar resíduos porque a coleta seletiva nacional é insuficiente para abastecer a demanda. No caso do papel, por exemplo, aparas de fibra longa vindas do exterior são usadas como complemento da produção local. Já na indústria metalúrgica, a sucata importada muitas vezes chegava a preços mais competitivos do que a obtida internamente.

Por outro lado, organizações ambientais e representantes dos catadores sempre denunciaram a contradição: enquanto toneladas de resíduos recicláveis brasileiros eram descartadas em lixões e aterros, o país continuava a gastar recursos para importar o que poderia ser coletado e reaproveitado localmente.

A lei de janeiro de 2025

Em 6 de janeiro de 2025, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.088/2025, proibindo a importação de resíduos sólidos. A medida buscou alinhar o país a compromissos internacionais, como a Convenção da Basileia, e ao mesmo tempo fortalecer a cadeia de reciclagem nacional.

A lei, contudo, estabeleceu exceções. Foram autorizadas importações em casos específicos, como:

  • resíduos utilizados para a transformação de minerais estratégicos;
  • certas sucatas metálicas;
  • aparas de papel de fibra longa;
  • logística reversa de produtos nacionais previamente exportados – ou seja, o retorno de resíduos brasileiros, que foram gerados a partir de produtos nacionais vendidos para fora. Esse retorno é parte de uma cadeia de responsabilidade ambiental do fabricante (a chamada logística reversa). Por exemplo, uma empresa brasileira exporta baterias de lítio para a América Latina. Depois de alguns anos de uso, as baterias ficam inutilizáveis e precisam ser descartadas. A empresa pode importar essas baterias para tratá-las em suas próprias instalações no Brasil, de acordo com normas ambientais. Isso não é considerado “importação de lixo estrangeiro”, mas sim cumprimento da logística reversa de produtos brasileiros.

A sanção foi recebida como um avanço, mas o setor de reciclagem e os catadores mantiveram cautela diante das brechas abertas pelas exceções.

O decreto de maio: ajuste na rota

Em maio de 2025, o governo publicou o Decreto nº 12.451, que revogou o decreto anterior (mais permissivo) e estabeleceu novas regras. A norma detalhou quais resíduos não poderiam mais entrar no Brasil, como plásticos, PET, papel, vidro e parte dos metais, permitindo apenas importações em condições técnicas específicas e sob cotas.

O decreto também inovou ao garantir participação social: catadores, cooperativas e fóruns de economia circular foram consultados na formulação das regras, garantindo que o impacto sobre a base da reciclagem fosse considerado.

O papel dos catadores

No Brasil, os catadores de materiais recicláveis representam a linha de frente da gestão de resíduos. Estima-se que cerca de 800 mil pessoas dependam diretamente da atividade de coleta, separação e venda de recicláveis. Um catador que trabalha diariamente, puxando um carrinho, que pode pesar mais de 250 kg por viagem, ganha, quando o mês é muito bom, entre 600 e 900 reais…

Esses trabalhadores desempenham um papel ambiental essencial: evitam que toneladas de resíduos acabem em aterros ou cursos d’água, reduzem a pressão sobre recursos naturais e promovem economia circular.

Contudo, enfrentam vulnerabilidade social, informalidade e concorrência desleal quando resíduos importados entram no país a preços baixos, diminuindo a demanda pelo material coletado localmente.

O Brasil importa lixo

Reações e perspectivas

Os catadores celebraram a mudança trazida pelo decreto de maio. Para eles, a legislação reduz em mais de 90% as importações de materiais como plástico PET, papelão, vidro, alumínio e ferro — justamente os itens que compõem a maior parte de sua renda.

Nas palavras de suas lideranças, trata-se de uma vitória histórica: “Nada sobre nós, sem nós”. O reconhecimento da centralidade dos catadores nas políticas públicas é visto como passo fundamental para que o país avance em direção a uma economia verdadeiramente circular e justa.

Conclusão

A decisão de restringir a importação de resíduos coloca o Brasil diante de um desafio e de uma oportunidade. O desafio é fortalecer a coleta seletiva, a infraestrutura de reciclagem e a valorização do trabalho dos catadores. A oportunidade é transformar um setor historicamente marginalizado em motor de desenvolvimento sustentável, geração de emprego e justiça social.

Se o país conseguir redirecionar os recursos antes destinados à importação de lixo para apoiar catadores e cooperativas, o ganho será duplo: menos resíduos descartados de forma inadequada e mais dignidade para quem dedica a vida a dar novo valor ao que a sociedade insiste em chamar de lixo.

Maristela Jardim Gaudio – Outubro 2025

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