O que se escuta na região norte
A toada do Boi de Parintins, o brega e o carimbó formam o tripé musical da Amazônia. A toada do Boi de Parintins é uma encenação folclórica de antiga lenda da região sobre um boi encantado que morre e ressuscita. Todos os integrantes estão fantasiados, há músicas tradicionais junto a novas composições, muitas danças e folguedos. As apresentações deste auto popular simbolizam uma disputa – que ocorre anualmente em junho, no Centro Cultural de Parintins, o Bumbódromo – entre as agremiações do Boi Garantido (vermelho) e do Boi Caprichoso (azul). A música que acompanha a festa é a toada, com 400 ritmistas tocando ao mesmo tempo, e as letras das canções trazem os sons da floresta e de pássaros da região. Com mais de cem anos, esta manifestação atrai um grande número de turistas estrangeiros.
A partir dos anos 1970, o brega e o carimbó, que resultam da fusão de vários ritmos, dominam os palcos e salões do Pará. No meio brega, o paraense evangélico Roberto Villar é o artista de maior vendagem de discos, sempre cantando músicas de amor. Dentre os grandes expoentes do brega estão o recifense Reginaldo Rossi (1943 – 2013), que começou no rock – com bastante influência de Elvis Presley – e depois passou à Jovem Guarda, abrindo shows de Roberto Carlos. E o almeirense Wanderley Andrade, com um brega pop de cadência quente e letras irreverentes. Os dois têm muitos fãs e um repertório com canções que exploram as mais variadas formas de paixão, sem grandes referências à região norte.
A Banda Sayonara é a pioneira no Brasil do estilo calypso; foi criada em Belém em 1960 e continua ativa, com canções de amor e muita dança nas suas apresentações. O calypso é um gênero musical brasileiro que se baseia no brega tradicional combinado com ritmos regionais do Pará, como a lambada e a guitarrada, em fusão com o calipso e o reggae dos países do Caribe.
Mas é o ritmo frenético do carimbó que revela com mais plenitude a personalidade paraense. Carimbó é o nome dado ao instrumento de percussão feito de um tronco escavado, em cuja extremidade estica-se um couro de veado que produz o som. Aurino Quirino Gonçalves, o Pinduca, músico paraense que nasceu em 1937, foi o responsável pela difusão do carimbó usando instrumentos eletrônicos e artifícios cênicos. Sua música mistura sonoridades típicas da América Central, Guianas e Suriname ao Carimbó Raiz. Essas referências são evidentes na indumentária “caribenha” de Pinduca, , que usa um grande chapéu, espécie de sombreiro, com adereços tropicanos pendurados. Em busca das raízes amazonenses, Pinduca conheceu em suas viagens a tribo Sateré-Mawé, que inventou a cultura do guaraná. Eles domesticaram a trepadeira silvestre e criaram o processo de beneficiamento da planta, possibilitando o consumo do guaraná pelo mundo inteiro. Para homenagear essa tribo, Pinduca compôs “A Lenda do Guaraná”.
Se Pinduca é o rei do carimbó, há também a rainha, dona Onete, que, octogenária, começou a carreira após a aposentadoria e compôs mais de 300 músicas, com versos a partir das tradições paraenses – como a culinária e o sincretismo religioso
Teixeira de Manaus teve grande vendagem de LPs durante a década de 1980 e foi idolatrado pelos ribeirinhos. Sua fama veio das “festas de beiradão”: tocando seu sax alto, foi o precursor desse movimento musical, o “beiradão”, que é uma mistura de carimbó, merengue, lambada, cumbia, forró, salsa, xote e música latina
Novas tendências da música da Amazônia
Composições e vídeos que se utilizam de recursos mais recentes, experimentais e ousados estão também presentes na região. O grupo República Popular faz um paralelo entre as origens da cultura amazonense e a Manaus urbana. No vídeo “Amazônida” as imagens feitas de colagens a partir de lendas amazônicas, cantos indígenas e festivais folclóricos ilustram a música plural do conjunto, que se baseia na tradição dos ritmos regionais somada a sintetizadores, baterias eletrônicas e vocoders.
O rapper Victor Xamã é manauara e, dentro da cultura hip-hop, usa sons esotéricos, xamanismo urbano, poesia de rua e beats intensos. No vídeo “Verde Esmeralda & Cinza Granito” contrapõe as duas cores, aparecendo enxames de besouros. Este inseto, que se alimenta de material orgânico em decomposição nas florestas e é extremamente importante para o equilíbrio ecológico, encontra-se muito presente na Amazônia, mas está diminuindo sua população devido às mudanças climáticas.
Gaby Amaranto tornou-se conhecida por seu vigor e pelo figurino extravagante, com roupas incomuns e grandes adereços multicores. Sendo uma das responsáveis pela difusão do tecnobrega, que logo contagiou a região norte, lançou “Purakê”, referência a conhecido peixe elétrico pré-histórico da Amazônia e nome que remete à eletricidade natural que Gaby considera ser sua força como cantora brasileira. O disco é sobre a Amazônia futurista, muito além do estereótipo, segundo diz; a água é o elemento presente e as canções foram feitas durante várias imersões na floresta, que deve ser preservada por ser a umidificadora do planeta, e isto é o que nos mantém vivos, afirma Gaby.
Há também o surrealismo visual dos clipes de Márcia Novo, que, sob o nome Amazônia Pop, mistura pop, lambada, boi-bumbá, beiradão, brega, ritmos caribenhos e beats eletrônicos, como em “Se Questa”, com Zezinho Corrêa, ícone da cultura amazonense que cantava na Banda Carrapicho. Já “I Love You mas Num Fresque Não” nasceu da boca de um ribeirinho, que soltou a frase, e mistura ritmos da Amazônia, piseiro e reggaeton colombiano, com Márcia cantando no seu marcante e arrastado sotaque amazonense.
Músicos da Amazônia e do Nordeste
Além dos três gêneros musicais que dominam a região, há ainda uma grande variedade de músicos na Amazônia que se utilizam de diversos estilos com diferentes arranjos em suas composições. Alguns dos mais representativos deles, que compõem suas obras a partir da cultura local, estão presentes em links aqui reunidos.
Waldemar Henrique (1905 – 1995), descendente de portugueses e de indígenas, é considerado o mais talentoso compositor lírico da região norte. Sendo o artista símbolo do Pará, há uma praça e um teatro com seu nome em Belém. Foi também pianista, maestro e escritor, criou mais de 200 canções inspiradas no folclore amazônico, em lendas indígenas e nos ritmos nordestinos e afro-brasileiros. Concebeu algumas das mais belas canções do repertório brasileiro, como “Uirapuru”, “Foi boto, sinhá” e “Tamba-Tajá”, esta a partir de conhecida lenda da tribo Macuxi.
O maestro amazonense Adelson Santos, um dos pioneiros nos protestos contra a destruição da floresta amazônica, foi idealizador e regente da Orquestra de Violões e da Orquestra de Vozes do Amazonas, sendo autor de vários livros e compositor de canções famosas. As escolas do Amazonas usam os versos de “Não mate a mata” (1975) para ensinar às crianças que os rios Negro e Solimões não se misturam. Esta é uma das mais conhecidas obras do cancioneiro amazonense, sendo cantada até hoje nas manifestações ecológicas.
A pesquisadora, compositora e cantora cearense Marlui Miranda é referência da música indígena do Brasil. Dedicando-se a estudar canções de indígenas na Amazônia, conheceu aldeias de várias etnias e passou a interpretar suas músicas sempre nas línguas nativas que aprendeu. Em “Araruna” canta na língua da tribo paranaense Parakanã, enquanto no clipe “Amazônia Brasil 2022” presta homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados na Amazônia.
Ronaldo Barbosa – antropólogo, filósofo e compositor – criou “Saga do Canoeiro” para o próprio pai; suas músicas tratam da exuberância da Amazônia e compôs mais de 100 toadas para o boi Caprichoso de Parintins.
Em “O Amazonês”, Nicolas Jr descreve um típico amazonense. Sendo conhecido pela crítica bem-humorada sobre o cotidiano amazônico, em suas letras Nicolas trata da cultura, política, linguagem e culinária da região. Na música “Feira da Panair”, cita o nome de vários peixes da região que são vendidos nessa feira, localizada no centro histórico de Manaus. Criou o DVD “História e Geografia do Amazonas em cantoria”, gravado no Teatro Amazonas, com 20 músicas que apresentam aos estudantes a história e a geografia do Amazonas por meio da música popular.
“Saga da Amazônia”( 1982), do poeta paraibano Vital Farias, retrata mitos amazônicos, a devastação da flora e da fauna, genocídios indígenas e o protesto do seringueiro regional frente à destruição da floresta por investimentos predadores de grandes projetos extrativistas. Marina Silva, Ministra do Meio Ambiente, tem essa canção como referência e, diz, sempre se emociona ao ouvi-la.
Nilson Chaves compôs, junto ao poeta João Gomes, a canção “Sabor Açaí“, que trata do significado do açaí para a população marajoara e amazonense. Além de ser considerada um hino da cultura paraense, está entre as “51 melhores músicas brasileiras de todos os tempos”, segundo enquete realizada pela revista Bula. Tendo como tema um dos animais mais característicos da região, Chaves também compôs “Olho de Boto”. Sebastião Tapajós (1943- 2021), famoso violonista paraense com reconhecimento internacional – principalmente na Alemanha –, gravou com Nilson Chaves o álbum “Amazônia Brasileira”. Tomado pela magia e encantos de sua terra, Tapajós foi a fundo nas raízes do nacionalismo musical brasileiro, e entre suas composições está “Xingu”, com Djalma Corrêa e Pedro Sorongo, um clássico que explora inúmeras possibilidades timbrísticas.
A banda Carrapicho, que reuniu 12 integrantes, foi criada no início dos anos 1980 em Manaus. A canção “Tic,Tic,Tac” é uma toada de boi-bumbá composta pelo parintinense Braulino Lima que, além de grande sucesso nacional, despontou em paradas de vários países, principalmente na França, vendendo15 milhões de discos e levando a cultura amazonense pelo mundo. Zezinho Corrêa, a voz principal do grupo, morreu de Covid em 2019, causando grande comoção na região norte.
Músicos do sul e do exterior
Conhecidos músicos do sul do país dedicaram-se a compor obras eruditas e populares para a Amazônia. Algumas tribos indígenas da região norte acreditam que o uirapuru é um pássaro que tem magia e traz sorte; quem o observa durante seu canto, se fizer um pedido vai tê-lo realizado. Villa-Lobos (1887-1959) foi o mais renomado compositor erudito sul-americano, criou mais de duas mil obras e dentre elas o poema sinfônico intitulado “Uirapuru” (1935), que também foi apresentado como balé. Villa-Lobos compôs também “Floresta do Amazonas”, para orquestra sinfônica com coro, uma de suas últimas obras e considerada uma das páginas mais importantes da música brasileira, onde se encontra esta “Canção de Amor”.
Em janeiro de 2007, João Carlos Martins – pianista bastante conhecido por suas interpretações de Bach e por ter sofrido diversos acidentes que comprometeram suas mãos –, apresentou-se com a Orquestra Bachiana de Câmara no Carnegie Hall, em Nova York, iniciando o projeto Amazon Forever. Na ocasião foi apresentada em estreia mundial a obra do compositor e pianista Stefan Melayers para a Amazônia. A intenção era sensibilizar os norte-americanos para a preservação da floresta e obter financiamento para o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA).
O músico minimalista norte-americano Phillip Glass criou “Águas da Amazônia” (1999), oito peças para balé, cuja primeira gravação foi realizada pelo grupo instrumental brasileiro Uakti. O músico inglês Sting, ex-líder da banda The Police, envolveu-se na defesa do meio ambiente e, principalmente, dos povos indígenas. Em várias de suas músicas há letras sobre estes temas e criou a The Rainforest Foundation Fund para proteger a floresta amazônica.
Roberto Carlos compôs “Amazônia” (1989), cujo refrão é “Amazônia, insônia do Mundo”, com um vídeo de imagens de onças, vitórias-régias, macacos e toras de madeira, procurando dar um alerta para a necessidade de preservar as riquezas incomuns presentes na região.
Bem mais recente, “Canção pra Amazônia” (2021) é um manifesto poético. Com música de Nando Reis e letra de Carlos Rennó, é interpretada por 31 artistas de várias gerações e diversos estilos, dentre os quais Gal, Gil, Caetano, Arnaldo Antunes, Elza Soares e Chico César. O vídeo, com a participação dos artistas cantando partes da música em meio a imagens da região, tem pouco mais de dez minutos e foi amplamente divulgado pela internet por todo país.
O que toca nas rádios e salões da região norte tem um grande sincretismo musical, com sonoridades familiares e muitas versões de sucessos americanos. Nas composições sobre a Amazônia, há poetas e músicos de excelência que trazem o território, os animais, as lendas e a necessidade de preservação como a essência de suas obras. A música natural da Amazônia começa com o canto do Uirapuru e a chuva nas folhagens.
Roberto Cenni
Foto: Uirapuru laranja – Pipra Faciicauda Creative Commons / Luiz Carlos Rocha