Mercúrio, Mineração, Destruição

Quem não é muito jovem lembra-se certamente do tempo em que todos os termômetros continham mercúrio. Um termômetro quebrado era uma alegria para as crianças. Dele saíam gotas brilhantes de mercúrio, que pareciam prata líquida e que se comportavam de modo muito peculiar: com uma pequena pressão, se dividiam em gotinhas menores de vários tamanhos, que, aproximadas, se atraiam e se reuniam em uma só. Não suspeitávamos da sua periculosidade.

Uma das maiores dificuldades no estudo da Química é compreender que tudo, T-U-D-O, ao nosso redor é composto por algum ou alguns dos 118 elementos da Tabela Periódica. Destes, 87 são metais, muito diferentes entre si, como prata, ouro, cobre, zinco, ferro, alumínio, platina, sódio, potássio, mercúrio… O símbolo do mercúrio –  Hg – vem do grego latinizado “hydrargyrum”,  que significa “água-prata”. O nome Mercúrio foi dado pelos antigos romanos: uma  homenagem à velocidade e mobilidade do deus Mercúrio, o mensageiro dos deuses.

Mercúrio, Mineração, Destruição

Foto: Cinábrio – Getty images

Mercúrio: o que é, de onde vem

O mercúrio é o único metal líquido em temperatura ambiente.  É raro na crosta terrestre, podendo ser encontrado em forma pura (metal nativo, muito raro), ou em minérios como, e principalmente, o cinábrio (na foto acima).  O nome cinábrio vem do Persa e significa “sangue de dragão”, uma alusão à sua cor vermelha profunda. Aquecendo essa rocha, o vermelho sulfeto de mercúrio se condensa e se transforma no mercúrio tal como o conhecemos: a “prata líquida”.

Um dos poucos elementos químicos conhecidos desde a antiguidade, o mercúrio foi encontrado em tumbas egípcias, datadas de mais de 1500 a.C. Também foi usado na Índia, na China, no Tibete e no México pré-colombiano. Gregos e romanos o usavam para unguentos e cosméticos (enquanto sulfeto de mercúrio). Antigos alquimistas, fascinados pelas suas quase mágicas propriedades, acreditavam que o mercúrio poderia ser convertido em outros metais mais preciosos, como o ouro – o que, naturalmente, não é verdade. 

Os principais produtores de mercúrio são a China, territórios da ex-União Soviética, Argentina, México, Noruega e Peru. O Brasil não produz mercúrio e importa a totalidade do seu consumo. A importação legal (regulamentada pela Convenção de Minamata), cresce há décadas, mas toneladas entram clandestinamente para abastecer o garimpo de ouro.

Mercúrio, Mineração, Destruição

Foto: G1/REUTERS/Bruno Kelly

Mercúrio: como se usa

O mercúrio tem muitos usos no campo científico desde o século XVI: na fabricação de instrumentos de medição, como termômetros, barômetros e manômetros, e em dispositivos eletroeletrônicos como disjuntores elétricos, válvulas, sinais luminosos e lâmpadas fluorescentes e de vapor de mercúrio. Também é usado na fabricação de cloro e cimento, em amálgamas dentários, pilhas, baterias, pesticidas para a indústria do papel, tintas, cremes e sabonetes clareadores da pele, catalisadores e reagentes de laboratórios.

Além dos termômetros, as crianças de até há poucas décadas tinham outro contato frequente com o mercúrio: o Mercurocromo ou Merthiolate (antissépticos de alta toxicidade, hoje não mais vendidos), que deixavam vermelhos os joelhos machucados.

Na mineração, o mercúrio é usado há séculos.

Duas propriedades do mercúrio interessam à mineração: a primeira é a sua capacidade de formar amálgamas. Misturado ao cascalho retirado do rio, faz com que pequenos grãos de ouro se unam. Em outras palavras, executa o importante trabalho de separar o ouro de outros sedimentos. A segunda propriedade do mercúrio, utilíssima aos garimpeiros, é aquela de se liquefazer e evaporar a uma temperatura muito mais baixa do que a do ouro. Basta um maçarico para separar os dois metais e ficar com o ouro puro. Além da contaminação da água, fazer evaporar o mercúrio para separar o ouro, contamina também o ar. Na verdade, 70% do mercúrio usado na mineração vai para o ar, 30%, para a água e solos.

Seguindo o dinheiro

A imagem romântica do garimpeiro peregrino e solitário, peneirando o cascalho no rio, foi substituída por imagens de inúmeras balsas nos rios da Amazônia. Elas carregam maquinários dispendiosos para sugar o cascalho, aplicar o mercúrio e despejar no rio os rejeitos contaminados.

Expor os financiadores do capital necessário para adquirir maquinários e balsas, transportar o ouro ilegal e fazê-lo chegar ao seu destino é urgente, assim como é urgente identificar os compradores brasileiros e estrangeiros. As normas que permitem uma autocertificação para declarar como legal a origem do ouro, estão para ser mudadas pelo governo Lula. O assunto é longo e há muitas publicações sobre a questão. Veja por exemplo as matérias publicadas nos sites Plena Mata, Amazônia Real e Brasil de Fato.

Mercúrio, Mineração, Destruição

Crateras e impactos deixados por garimpo em Terra Indígena. Foto 📷 Divulgação ISA

Mercúrio, Mineração, Destruição

Foto: Divulgação-MineraçãoBrasil.com

Mineração e Destruição

Os rios mudaram de cor, as ribanceiras despencaram, as margens são de lama. Água e alimento agora são perigosos.  Os  yanomami se perguntam: “O ouro vale mais do que a vida? O ouro vale mais do que a saúde da gente? Não sabemos como tirar o mercúrio do fundo do rio. Mas sabemos como fazer para ele não chegar lá”. 

Eles têm razão. Para que o mercúrio não chegue lá é preciso impedir o garimpo. O mercúrio se deposita no fundo do rio e, não encontrando oxigênio, se transforma em metilmercúrio. O metilmercúrio é rapidamente absorvido por seres pequenos como bactérias, algas, larvas de insetos e de peixes, que vivem nas águas dos rios. Quando os peixes, os tracajás (grandes tartarugas da Amazônia), os caranguejos, os camarões e outros que vivem na água se alimentam desses seres bem pequenos, o metilmercúrio se incorpora aos seus tecidos.

O mercúrio faz parte de um grupo de 22 substâncias chamadas de Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs). Essas substâncias têm uma propriedade que aumenta a sua toxicidade. São pouco solúveis em água e muito solúveis em lipídios (gorduras), o que as torna facilmente absorvidas pelo tecido gorduroso de peixes e mamíferos. Peixes pequenos já contaminados alimentam peixes maiores. Dessa forma, a concentração de mercúrio vai se tornando cada vez maior na cadeia alimentar, à medida em que os organismos se alimentam de outros que já apresentam o mercúrio acumulado em seus tecidos. Esse processo é denominado bioacumulação. Os grandes peixes da Amazônia, muito apreciados também no sul do país, apresentam a maior concentração de mercúrio. O impacto sobre os mamíferos aquáticos e endêmicos da Amazônia, como o peixe-boi e o boto cor-de-rosa, é enorme.

Não faltam informações sobre os quilômetros de rios envenenados, sobre as áreas de floresta rasa ao solo, sobre a saúde indigena, sobre o impacto na biodiversidade, sobre as consequências para o planeta da devastação da Amazônia. Veja os sites do INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial),  ISA (Instituto Sócio Ambiental), GreenPeace, Clima Info, (o)eco, entre outros.

O mercúrio não é o único responsável pela destruição provocada pelo garimpo. A invasão do território (20 mil garimpeiros em terras Yanomami), o roubo de remédios e vacinas destinados aos indígenas, o estupro de meninas e mulheres, a pesca e caça ilegais tornam impossível a vida das populações originárias.

O desmatamento, outro responsável pela destruição do bioma, cresceu exponencialmente nos últimos 4 anos. Muitos milhares de caminhões levaram mais de 300 milhões de árvores entre 1o de janeiro e 10 de agosto de 2022. Isso significa que, a cada dia, mais de 1,4 milhão de árvores foram derrubadas, 1.024 a cada minuto, 17 a cada segundo, em média. O então Ministro do Meio Ambiente e o Presidente da República protegeram e incentivaram o corte da floresta e o garimpo, com o consequente efeito sobre humanos, fauna, rios.

Mercúrio, Mineração, Destruição

Foto: Metrópoles.com

A tragédia Yanomami

O ouro é o principal motivo da tragédia que atinge o povo yanomami. Os garimpeiros deixam um rastro de destruição por onde passam

Em novembro de 2020, a FioCruz e a organização WWF-Brasil realizaram um estudo que mostrou que 100% dos indígenas Munduruku haviam sido contaminados pelo mercúrio do garimpo. As aldeias Yanomami não estão em situação melhor.

O metilmercúrio tem um alvo específico: o sistema nervoso central. Através do alimento contaminado, o mercúrio vai para a corrente sanguínea e chega até o cérebro, onde pode causar retardamentos mentais, prejudicar a audição, comprometer a coordenação motora, a densidade dos ossos, o sistema imunológico, o metabolismo, os sistemas endócrino, cardiovascular, gastrointestinal, hepático, reprodutivo etc. Os sintomas da contaminação vão de dor de cabeça, tremores, insônia, fraqueza muscular a gastroenterites hemorrágicas, paralisa cerebral e morte. A intoxicação por mercúrio é especialmente perigosa para gestantes, já que  o feto também é atingido. O seu cérebro em formação é muito mais vulnerável aos efeitos do metilmercúrio. Insistir na mineração na Amazônia equivale a condenar à morte os povos que vivem na floresta e que dependem dos recursos da floresta.

Mas o que acontece na Amazônia não fica só na Amazônia, mas tem efeitos planetários: tudo está interligado, a Terra funciona como um sistema, do qual também a nossa espécie é parte, e a destruição da floresta contribui fortemente para acelerar o colapso ambiental e o colapso das sociedades humanas tal como as conhecemos.

Uma mudança na organização social e na relação com a natureza nāo só é necessária, mas urgente. Este é o decênio decisivo.

(O Decēnio Decisivo, de próxima publicação, é o segundo livro de Luiz Marques (Unicamp), sobre questões ambientais. O seu primeiro livro, Capitalismo e Colapso Ambiental, de 2015, está na terceira edição e já foi publicado também em inglês).
(Para outras formas de contaminação por mercúrio, veja o site das Nações Unidas, clicando aqui.)

Maristela Jardim Gaudio

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