Híbridos da mudança climática

A edição de 2009 da Lista Vermelha das espécies ameaçadas de extinção, elaborada periodicamente pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), mostrava que 30% das espécies de anfíbios estavam, em graus diversos (Vulneráveis, Ameaçadas e Criticamente Ameaçadas), nessa condição, tal como mostra a figura abaixo:

anfíbios 30%

Apenas cinco anos depois, a Lista Vermelha da UICN de 2014 mostrava que já 41% das espécies de anfíbios estavam ameaçadas de extinção (limites inferiores e superiores: 31% – 56%).

O processo de extinção em curso dos anfíbios é demonstrado por outro indicador, o Global Living Planet Index (GLPI), igualmente periódico, que avalia o comportamento populacional das espécies de vertebrados. Em sua última edição, de 2014, o GLPI mostra que em apenas 42 anos (1970 – 2012) as populações de anfíbios, no âmbito das espécies avaliadas, diminuíram nada menos que 81%, sendo o grupo taxonômico que acusa perdas mais radicais entre os vertebrados, como mostra a figura abaixo.

Anfíbios

Após os corais e a ordem dos primatas, em nenhum grupo taxonômico  o processo em curso de extinções em massa é tão evidente quanto na classe dos Amphibia, composta de cerca de sete mil espécies conhecidas (7.273 em maio de 2014; veja-se www.amphibiaweb.org), 6.409 das quais avaliadas pelo UICN.

Os anfíbios têm ao menos três características que facilitam sua extinção: (1) a permeabilidade de sua pele torna-os mais sensíveis à intoxicação da água e do ambiente em geral; (2) sua dependência de habitats terrestres e aquáticos  torna-os mais vulneráveis a alterações em um desses dois habitats; (3) sua menor mobilidade faz com que tenham distribuições muito pequenas, o que os torna mais indefesos a alterações ambientais locais. Os anfíbios são as primeiras vítimas de agressões a que estarão sujeitas em seguida outras espécies ou grupos de espécies.

Não obstante as primeiras advertências do declínio das populações de anfíbios remontem a 1950, um sinal mais consensual de alarme desse declínio soou apenas durante o I Congresso Mundial de Herpetologia ocorrido na Inglaterra em 1989. Criou-se então por iniciativa da UICN a Declining Amphibian Populations Task Force (DAPTF), com a missão de “determinar a natureza, a extensão e as causas do declínio dos anfíbios no mundo e promover os meios de sustar ou reverter esse declínio”. Em 2001, a UICN criou o Global Amphibian Assessment (GAA) e sucessivas avaliações foram publicadas em 2004 e 2007.

As causas da extinção em curso são complexas e multifatoriais, diferindo entre espécies e localidades, mas as principais delas são de caráter antrópico. A primeira é a destruição e a fragmentação, pelo desmatamento, pela expansão da fronteira agrícola e pela urbanização, dos habitats dos anfíbios, processo que afeta 63% das espécies de anfíbios e 87% das espécies ameaçadas. A segunda causa é a poluição por pesticidas e outras toxinas introduzidas nesses habitats, processo que afeta 29% das espécies ameaçadas. Mercúrio, pesticidas, herbicidas, fertilizantes e o bisfenol-A foram associados a efeitos letais diretos ou subletais e indiretos sobre diversas espécies de anfíbios.

Um trabalho de uma equipe de pesquisadores coordenada por Tyrone B. Hayes, da Universidade de Berkeley, demonstrou que “a atrazina e outros pesticidas disruptores endócrinos são prováveis fatores em ação nos declínios globais dos anfíbios”[Hayes et al. (9/III/2010, pp. 4612-4617): “The present findings exemplify the role that atrazine and other endocrine-disrupting pesticides likely play in global amphibian declines”].

O artigo de Miguel Angel Criado, abaixo reproduzido, mostra outro tipo de resposta dessas espécies ameaçadas, não já apenas à destruição de seus habitats, mas também a alterações ecológicas causadas sobretudo pelas mudanças climáticas.

Luiz Marques

O que os sapos da fotografia estão fazendo não é comum. A fêmea (por baixo) e o macho pertencem a duas espécies diferentes e seria preciso viajar milhões de anos no tempo para encontrar um ancestral comum. Mas a mudança climática voltou a juntá-los e tiveram híbridos. E não são os únicos. Um número crescente de espécies de plantas e animais mais ou menos separadas geneticamente agora se reproduzem. Os resultados dessa hibridação provocada pelos humanos são incertos. No caso desse casal de anfíbios, os girinos nasceram com malformações e nenhum chegou a completar a metamorfose.

A fotografia desse particular abraço reprodutor próprio dos anfíbios e conhecido como amplexo foi tirada em maio de 2014 no parque regional de Partenio, uma área protegida da Campania, uma região do sul da Itália. A fêmea é um exemplar de sapo europeu (Bufo bufo), uma espécie presente em quase todas as latitudes da Europa. O macho, menor, é um sapo balear (Bufotes balearicus) que atualmente só pode ser encontrado na metade sul da Itália, suas ilhas, Córsega e as Baleares.

Os biólogos que presenciaram a cena coletaram várias fileiras de ovos após serem fecundados pelo macho. Como controle, também coletaram outras duas fileiras de outros sapos. Já no laboratório, estudaram a evolução dos ovos e esperaram sua eclosão. Das três fileiras, somente no caso dos híbridos os cientistas viram que a maioria apresentava um desenvolvimento e morfologia anormais. Uma análise genética confirmou que eram crias do sapo europeu e do balear.

A hibridação é relativamente comum nas plantas e entre as espécies animais de recente divergência”, diz o professor de Ecologia da Universidade da Tuscia (Viterbo, Itália) e principal autor da pesquisa, Daniele Canestrelli. Mas essas duas espécies de sapo estão separadas por 30 milhões de anos de evolução. “É quase a divergência temporal que existe entre nossa própria espécie e os mandris em números de anos, e com os lêmures em relação a gerações. Casos de hibridação entre espécies separadas há tanto tempo são extremamente raros na natureza e nunca foram explicados e atribuídos ao azar. Nosso trabalho é o primeiro que liga os pontos, oferecendo provas de um mecanismo causal: o impacto da mudança climática no ciclo vital das espécies envolvidas no hibridismo”, afirma.

Apesar de o sapo balear e o europeu compartilharem espaço e tempo, os primeiros preferem territórios mais baixos do que os segundos. Além disso, seus ciclos vitais, habitats e períodos de acasalamento não batiam até então. Mas o aquecimento global alterou a vida desses anfíbios. Mais exatamente, o sapo europeu atrasou seu período reprodutivo até bater com o do sapo balear. E este há uma década tem subido cada vez mais, até chegar às áreas do sapo europeu.

Essa subida das montanhas de muitas espécies é uma das consequências mais evidentes da mudança climática. No vulcão Chimborazo (Equador), plantas que só cresciam a uma determinada altitude há 200 anos, agora o fazem muito mais acima. Um fenômeno semelhante ocorre em Sierra Nevada, no sul da Espanha. Nos montes granadinos crescem 7% das 24.000 espécies de plantas vasculares de clima mediterrâneo.

“25% das espécies vegetais de Sierra Nevada estão em processo de hibridação”, diz Juan Lorite, professor de Botânica da Universidade de Granada. As mudanças nos padrões climáticos estão fazendo com que espécies de cotas mais baixas aparentadas com as que crescem no alto da montanha prosperem em altitudes cada vez maiores, criando novas oportunidades para a hibridação. “E 50% das espécies restantes podem seguir o mesmo caminho”, afirma Lorite. O resto são relíquias da última glaciação e o abismo genético com as espécies circundantes faz com que seja pouco provável que se mesclem. “Podem desaparecer, mas pela mudança nas condições que as permitem viver”, esclarece o professor.

A hibridação não é ruim por si só. De fato, é um dos processos mais comuns na evolução. Ocorre, por exemplo, em 40% das espécies de plantas. Além de comum, tem suas vantagens. Uma é que favorece a diversidade genética e a transmissão de adaptações vantajosas de uma espécie a outra. É o que aconteceu ao rato comum europeu na última parte do século passado. Perseguido pela varfarina, um fármaco anticoagulante muito eficaz como raticida, sobreviveu graças aos genes emprestados por um parente próximo, o rato argelino (Mus spretus). Os híbridos de ambos são resistentes à varfarina.

Mas à medida que duas espécies que no passado foram uma se separam, a natureza levanta barreiras ao seu reencontro. Podem ser geográficas, como mares, rios e montanhas. Também ecológicas, quando dois animais dividem espaço, mas têm ciclos vitais, nichos e presas diferentes. Ao final, o tempo constrói a barreira mais definitiva, a genética. É a que, como no caso dos sapos, dificulta a sobrevivência dos híbridos.

“A má fama da hibridação existe fora da comunidade científica, não dentro”, comenta José María Gómez, pesquisador da Estação Experimental de Zonas Áridas (EEZA-CSIC) que, com o professor Lorite, pesquisou seu impacto na Sierra Nevada. “Tendemos a pensar que as espécies são categorias estanques e qualquer fenômeno que perturbe isso nos parece negativo. Mas a hibridação é um processo evolutivo muito importante”, diz. Ainda que pense na hibridação natural, sua avaliação sobre a causada pelos humanos não é muito diferente. “O processo biológico é o mesmo. Poderia nos parecer negativa por ser provocada pelos humanos, mas isso já é um juízo de valor”, conclui.

O biólogo marino Brendan Kelly, um dos que confirmaram a existência de híbridos entre ursos polares e pardos e o intercâmbio de genes entre as espécies pelo desgelo ártico, acredita que é tudo questão de graduação: “A integridade das espécies pode ser mantida com baixos níveis de fluxo genético, enquanto um fluxo elevado, natural ou provocado pelos humanos, pode levar à perda de espécies”. Mas, como ele mesmo reconhece, “as rápidas mudanças ambientais causadas pelo aquecimento antropogênico ameaçam causar altos níveis de intercâmbio genético”.

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