Desarmamento Nuclear e a utopia necessária

A leitura de Desarmamento Nuclear, livro de Wolf Ejzenberg que se originou de sua dissertação de mestrado no departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e foi publicado em 2017, é interessante por ao menos dois motivos, ainda mais neste momento da invasão da Ucrânia por uma grande potência nuclear.

Um, mais óbvio, porque Ejzenberg traça o histórico do armamento nuclear, com as tensões todas que implicam a dificuldade de desarmamento. E outro pela instigante discussão, na área das Relações Internacionais e do Direito Internacional, entre uma epistemologia realista e uma idealista*. O desarmamento seria conduzido pela segunda, um idealismo exposto, e vinculado ao Direito Internacional, por Emanuel Kant em À Paz Perpétua, ensaio de 1795. O interesse da discussão realismo/idealismo ultrapassa o campo das relações internacionais, onde ela é, entretanto, fundamental.

O livro aponta como a antiga União Soviética e os Estados Unidos, junto a outras potências ocidentais, foram ganhando o monopólio na fabricação e manutenção de armas nucleares. Cada novo país que entrava para esse grupo seleto acabava em seguida posicionando-se pela não proliferação das armas em outros países. Se o argumento dado é cabível – as chances de um acidente de enormes e trágicas proporções apenas cresce com a inclusão de mais e mais Estados com manejo nuclear –, isso por outro lado causou uma concentração do poder por parte de quem detinha as armas.

Realismo x Idealismo

Tento a seguir sintetizar com minhas palavras o dissenso realismo/idealismo, mas o melhor seria acompanhar a inspiradora incursão de Wolf Ejzenberg pelo texto de Kant, logo aplicado ao tema do desarmamento nuclear. 

Se o argumento realista defende que contra um leão o outro deva estar atento e a postos, para desencorajar um ataque, a lógica idealista considera que os seres humanos possam e devam ter no horizonte um bem comum, a cooperação e a paz. Não que os realistas não tenham também esse horizonte ­– preservado, porém, por meio do medo que cada um deve ter do outro. A aposta idealista não seria portar armas para inibir um ataque, mas ambos os lados irem gradualmente e juntos se desarmando, segundo um ideal ético maior. Guiar-se por esse ideal acabaria por criar uma diferente realidade.

Um dos méritos do livro de Ejzenberg é, portanto, difundir uma filosofia do conhecimento e da ação fundamental também hoje em dia. O texto de Kant é muito atual. O descolamento da realidade proposto, fazendo com que o sujeito volte a beber da Lei e do ideal que o constitui, para depois tornar a agir no real, dentro dos limites factíveis a cada vez, mas na direção certa e usando-se de todas as brechas para transformar a realidade, penso que isso ventila a vida de qualquer um, de qualquer leitor, para tratar de todos os temas. É importantíssimo sentirmos que as coisas não possuem uma solidez esmagadora, mas que a realidade é transmutável, a partir de nossos anseios mais fundos de paz.

A teoria do realismo e idealismo evoca, pode-se pensar aqui, a teoria psicanalítica de Jacques Lacan sobre a diferença entre a relação de dois – permeada por um medir de forças e pela competição (que corresponderia ao “realismo” em Relações Internacionais) – e a relação de dois mediada pelo terceiro, o simbólico que nos constitui e pode nos fazer sair da prisão do “estágio do espelho”, prisão na qual cada um chama a atenção para si e deseja sua primazia. Desenvolver essa ideia fica para outra hora, mas ela certamente se relaciona ao lema de “do ego ao eco” que norteia o Ecovirada.

Vigilância da sociedade

Concretamente, pensando em resolver a questão do desarmamento em si, as considerações precisas do livro não estimulam apenas o Direito Internacional, área de conhecimento na qual ele se situa, mas os próprios agentes políticos, em que se incluem todos os cidadãos, detentores de diversos instrumentos de participação numa democracia. O livro informa o leitor sobre os temas de que trata e lhe dá referências também éticas para agir politicamente. Difundir filosofias como essa, que ao longo de 200 páginas se desenvolve em conexão com a análise histórica do panorama atual, pode contribuir para a formação de qualquer pessoa, para além da função informativa de um candente tema mundial.

O livro já se referia à anexação da Crimeia, contextualizando-a no monopólio da força nuclear (pela Rússia, Estados Unidos e outras potências ocidentais), da qual a Ucrânia se viu privada. Vale ler o livro de Wolf Ejzenberg não só para compreender melhor como se formou o atual xadrez da ameaça nuclear, como para que um outro tipo de solução nos inspire e oriente. E não só quanto a esta importante circunstância atual da guerra da Ucrânia, mas em nossa atuação no mundo em geral. Apostas e ações são necessárias para sermos copartícipes de uma realidade melhor.

Esperamos em breve fazer uma entrevista com o autor do livro sobre a sua leitura do atual conflito mundial relacionado à invasão da Ucrânia.

 Rosie Mehoudar

Ejzenberg, Wolf. Desarmamento Nuclear. Belo Horizonte: Arraes, 2017.

* Curto comentário sobre o Realismo e o Idealismo pode ser lido neste texto do Diário de Pernambuco:

CASTRO, Thales. O real e o ideal nas Relações Internacionais. Diário de Pernambuco, 16 ago. 2019. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/colunas/2019/08/o-real-e-o-ideal-nas-relacoes-internacionais.html. Acesso em: 26 mar. 2022.

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