Crise climática e urgência espiritual
Em 2019 Luiz Marques escreveu Capitalismo e Colapso Ambiental, premiado com o Jabuti. Retoma agora e desenvolve, com ainda maior sentido de urgência, possíveis soluções para a crise ambiental. Seguem ideias que me ocorreram depois de ler a conclusão de seu livro O decênio decisivo, já pronto e prestes a ser publicado. No enfrentamento da crise climática, porém, elas só valem se articuladas a transformações socioeconômicas como as propostas pelo autor.

As proposições de Luiz Marques para salvar a vida no planeta operam implicitamente uma mudança ético-espiritual e um incremento da sabedoria, tal qual é concebida pela epistemologia budista (insight em como a mente funciona), ao suporem a interdependência entre os fenômenos e a superação do egocentrismo. Este se baseia na ilusão e tem como consequência a autodestruição, na medida em que implica a inviabilidade da vida humana no planeta num prazo não muito longo.

Gostaria de complementar a análise do Luiz com outros apontamentos, de caráter mais especificamente psíquico ou espiritual. Aliás, os elos entre a transformação econômica e de um ideário de vida podem ser lidos em vários textos, como, por exemplo, os que falam de um bem-viver nas sociedades tradicionais indígenas.

O que alimenta o consumo desenfreado é algo muito bem mapeado por Freud e por Lacan: uma sede incessante de satisfação; a “vivência de satisfação” é imperativa no funcionamento humano. Presentear-se com um objeto diferente a cada vez e com a renovação ou reforço do amor próprio, uma vez que bens exibidos atraem a admiração de si pelos outros, esse é o modo de vivência de satisfação em que se apoia a sociedade capitalista atual. Viajar, ver novas paisagens, dispersando assim o tédio; tirar fotos da viagem e mostrá-las aos amigos e inimigos, assim continua a operar a mesma lógica.

E se não sairmos de um pequeno perímetro, mas a vivência no espaço em que nos movemos for tão intensa que o tempo ganhe nova espessura, um dia não passando logo e sem graça? E se aprendermos o caminho mais essencial da vivência de satisfação pela realização (ou mesmo por apenas trilharmos um caminho que possa levar a ela) de nossa mente e seu potencial? A própria ciência diz que usamos pouco de nossa capacidade mental.

Não é preciso viajar concretamente nem usar droga para aprender a vertigem da viagem. Não é preciso comprar uma roupa nova ou um carro a cada dois anos para ter alegria. Há uma inflação de bens oferecidos, de criação de empregos desnecessários ou deletérios, que vão gastando recursos do meio-ambiente. Uma educação por caminhos de vivências de satisfação muito mais profundas pode e deve andar junto com as propostas econômicas de decrescimento*.

Além disso, as tradições e a investigação intelectual de autores de diferentes áreas mostram como valores éticos de cooperação, empatia, generosidade andam junto com a realização do potencial da mente, aumentando a fruição do mundo (o indivíduo egocêntrico reduz a fruição à sua autopromoção, vive nesse espaço apertado de autoafirmação ou medo de perder) e da vida, em sua dimensão interna/externa.

Algumas tradições não construiriam foguetes, mas desenvolveram uma ciência interior: da alegria, da sabedoria, do amor … É tempo de retomar isso e diminuir os índices assustadores de depressão, suicídio, pânico, medicação psiquiátrica desde a infância. Estamos alienados na mercadoria, como bem mostraram Marx, vários outros depois e, aqui, o Luiz Marques, e isso não faz bem nem ao planeta e nem à psique. Hora do retorno e do redirecionamento.

Precisamos de propostas econômicas e concretas como as do Luiz. Precisamos também de uma educação que nos mostre que o decrescimento externo deve aliar-se ao desenvolvimento interno em patamares de bem viver e de satisfação hoje desconhecidos em nossa sociedade de consumo.

Junto com seu sentido de cooperação e seus modos de tratar a natureza, os indígenas mobilizam todo um aparato espiritual, que se articula intrinsicamente à sua vivência da Terra. Diferentes tradições milenares também trazem um mapa espiritual compatível com mudanças econômicas estruturais que protejam a vida na Terra e nossa possibilidade concreta de honrar o potencial humano de realização, ao mesmo tempo em que cuidamos uns dos outros. Equanimidade, amor e compaixão fazem parte da trilha de sabedoria. A vida humana faculta a iluminação e é preciosa, mostra o budismo. Que não destruamos a natureza que torna a vida possível. Que cuidemos de regenerá-la, junto à nossa regeneração espiritual. Do ego ao eco, sempre.

Rosie Mehoudar

Foto: Francesco Prevosti

* O conceito de “decrescimento” é controvertido e discutido em uma ampla bibliografia. Às vezes o verbete da Wikipedia é feito por bons especialistas, e este em francês é bastante rico, trazendo uma história do conceito e fartas indicações bibliográficas.

Categorias: