Cidades Selvagens

O interesse pelas Wild Cities, ou Cidades Selvagens, vem aumentando e visa principalmente possibilitar contato com a biodiversidade no ambiente urbano, além de oferecer maior qualidade de vida com cidades mais sintônicas.

Durante o período da pandemia – quando as pessoas não ocuparam as ruas, não transitavam com seus carros e pararam suas atividades – observou-se em várias cidades pelo mundo o aparecimento de animais silvestres em espaços incomuns a eles. Andavam pelas vias – em busca de comida ou explorando territórios desconhecidos – macacos, cobras, lagartos e muitas outras espécies. Pôde-se admirar cisnes nas águas cristalinas dos canais de Veneza, golfinhos na ilha da Sardenha, patos nas fontes de Roma, pavões no centro de Madrid, macacos tailandeses antes alimentados por turistas invadindo prédios públicos, cervos japoneses vistos fora do parque onde habitam em Nara… Essas imagens ocupavam os noticiários de todos os países, causando surpresa e alegria nas crianças. Até mesmo animais bastante selvagens entraram nas cidades, como javalis nos passeios de Barcelona e uma onça-parda que se aventurou pelas ruas de Santiago.

estudos recentes sobre a capacidade de adaptação de animais ao conturbado ambiente urbano, porém muitas espécies não se adequam à vida nas cidades; as que mais se aclimatam são as de animais com ciclos reprodutivos rápidos e com uma dieta variável. Alguns pássaros conseguem mudar seus hábitos, e até mesmo sua morfologia, para se adaptar às metrópoles. Entre os chapins-carvoeiros, os indivíduos mais alertas e agressivos se dão bem no espaço urbano. Esses pássaros põem seus ovos mais cedo e têm filhotes menores; são mais ativos e cantam mais alto para poderem se fazer ouvir além dos ruídos da cidade. 

Iniciativas de “renaturalização” urbana estão propiciando a volta da vida selvagem às grandes cidades, com propostas de se criarem prados para borboletas e se construírem ninhos para aves de rapina.

Em alguns casos, desenvolver núcleos de vegetação já pode atrair espécies. Procedentes da América do Norte, a presença das borboletas-monarca vem diminuindo desde os anos 1980, pois a asclépia – planta essencial para sua reprodução – foi sendo exterminada por ser muito invasiva. Pode-se criar um santuário para borboletas-monarca procriarem, com viveiros de lagartas e um ambiente para crisálidas e borboletas adultas; a proliferação dos insetos polinizadores, como abelhas e borboletas, é essencial para a formação de frutos e sementes que reproduzem as plantas.

Os falcões-peregrinos foram dizimados nos EUA, principalmente pelo uso do pesticida DDT (muito usado na agricultura até se descobrirem os perigosos danos que causava), cuja toxina se espalhava pela cadeia alimentar, afetando as aves de rapina. Hoje são avistados com frequência cruzando freneticamente os espaços de Nova York e pousando em arranha-céus – locais bem altos e longe dos predadores habituais, como guaxinins e raposas –, onde fazem seus ninhos. Alimentando-se de pombos e aves migratórias, hoje os falcões podem ser encontrados em quase todas as cidades norte-americanas. Além do prazer de observá-las, as aves de rapina colaboram na redução de roedores nas metrópoles.

Olhando o desenho arquitetônico das cidades, até há pouco a urbanização era entendida por muitos como a transformação de áreas verdes em formas geométricas acinzentadas, espalhando pelas cidades concreto, asfalto e vidro nas mais variadas construções. Hoje os habitantes dos centros urbanos nem percebem o espaço restritivo em que vivem: o trabalho e as redes sociais ocupam os dias das pessoas que consideram um encontro com a natureza como um programa de férias.

Como cada vez mais se divulga, parques estaduais e municipais, praças, jardins e todo tipo de área verde nos centros urbanos devem ser considerados de capital importância, pois as árvores retêm as águas das chuvas, umidificando o ar e reduzindo a temperatura; absorvem o dióxido de carbono da atmosfera; e favorecem a biodiversidade, proporcionando o ciclo de vida de diversas espécies, principalmente aves e insetos. Além disso, espaços verdes são importantes para a manutenção da saúde física e mental, humanizando as cidades. O entorno muda nosso comportamento, e os cidadãos, ao terem consciência disto, deveriam ser guardiões das áreas verdes.

O Instituto Tomie Ohtake realizou, em 2010, a exposição “Arquitetura Brasileira – viver na floresta”, uma iniciativa de Abílio Guerra, que apresentou 24 projetos (entre 1930 e 1970) em que houve a preservação do meio natural e seu uso como suporte paisagístico. Dentre eles, estavam a Casa de Vidro e o Parque do Ibirapuera, em São Paulo; o Parque do Flamengo, no Rio; e o Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte. 

A jornalista Natália Fontes Garcia, que faz consultoria de inovações urbanas,  pesquisou, em mais de 100 cidades pelo mundo, alternativas para se viver em grandes centros. Ressalta que o colapso sistêmico em que estamos imersos – trânsito desordenado, poluição do ar e das águas, estresse constante e obsessão pelo trabalho, com grande sedentarismo – vem causando doenças cardiovasculares e respiratórias, cânceres e muita ansiedade, que resultam da maneira como as pessoas se acostumaram a viver nos centros urbanos. Depois de termos canalizado os rios e concretado a cidade, represando a água e provocando acúmulo de resíduos, a água da chuva precisa circular e a temperatura deve ser amenizada. A única maneira para isto acontecer é trazer de volta um pouco da mata para retomar o equilíbrio climático sistêmico. Esta transformação ambiental das cidades deve se iniciar com uma mudança de paradigma em nós, tão habituados à palidez urbana, em busca de maior proximidade com os ciclos das estações e dos alimentos e valorizando uma vida mais espontânea.

Há em todo o mundo iniciativas em busca de melhores condições para os habitantes das grandes cidades. Soluções baseadas na Natureza (SbN) é um conceito criado pela União Europeia no qual se baseiam projetos de engenharia a partir de processos naturais e procura considerar as necessidades ambientais, sociais e econômicas. A intenção é diminuir os impactos das mudanças climáticas, estimular a biodiversidade e promover o desenvolvimento sustentável.

Algumas das soluções baseadas na natureza que podem ser incluídas no planejamento urbano são: espaços verdes que diminuem ilhas de calor (o que vem acontecendo em Barcelona e Durban, na África do Sul); hortas urbanas que retêm água e estimulam a produção sustentável de comida (Dresden, na Alemanha); telhados verdes que são isolantes térmicos e ajudam a prevenir alagamentos (Chicago); superfícies permeáveis para prevenir alagamentos (cidades-esponja na China); e restaurar ecossistemas em áreas costeiras (Semarag, na Indonésia, como proteção do aumento do nível do mar). 

Segundo Philippe Clergeau, ecologista do Museu Nacional de História Natural em Paris, “O planejamento urbano terá que mudar completamente… Não é mais uma questão de plantar fileiras de uma única espécie de árvore, ou fazer paisagismo artificial. Nós precisamos recriar ecossistemas genuínos, semelhantes aos de campos e florestas”. Desta maneira, árvores frutíferas, espinheiros e gramíneas selvagens deveriam se espalhar pelas calçadas, promovendo uma continuidade da flora entre o campo e a cidade; o ideal seria que as fachadas dos prédios e os telhados também fossem cobertos por vegetação.

Além da intenção de facilitar a presença de animais e árvores, ampliando a dimensão da vida nas cidades, há outras propostas para diminuir a aridez metropolitana, como a de Erik Cisneros, urbanista mexicano, que pesquisa soluções eficientes e de baixo custo para a mobilidade e a promoção da qualidade de vida nos grandes centros urbanos.  Para tanto, desenvolve o Urbanismo Tático, em busca de mudanças sociais que beneficiam a prática de atividades físicas e a segurança dos habitantes, de tal forma que as pessoas se apropriem do seu entorno mantendo a infraestrutura do espaço. A ideia do Urbanismo Tático é conceber mudanças no desenho urbano antes de implantá-las permanentemente; a intenção é possibilitar novos sentidos e dinamizar os lugares com a implementação de alterações rápidas, reversíveis e de baixo custo, visando maior segurança e sociabilidade para as pessoas.

Cisneros afirma que as cidades foram desenhadas por homens e para homens jovens em idade produtiva, mas é importante transformar as ruas visando as mulheres, que são as pessoas que se movem mais e transitam diariamente, além de oferecer espaços lúdicos para as crianças.

A necessidade de viver de outra maneira que não a determinada pelo capitalismo e sua predação desenfreada vem sendo sentida em todo o mundo e as propostas de projetos alternativos são cada vez mais consideradas. O que se chama de Cidades Selvagens é, na verdade, uma importante alternativa de promover o fluxo da vida diante da existência inóspita a que nos habituamos nas grandes cidades.

Roberto Cenni

Imagem: Manhattan Waterfront Greenway, NY. Disponível em: <https://www.iberdrola.com/sustentabilidade/corredor-verde>.

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