Ahimsa – a não agressão a seres vivos

Yamas são preceitos morais e éticos do yoga que devemos ter em relação ao outro, à natureza e a nós mesmos. Ahimsa, o primeiro dos cinco Yamas, pela etimologia significa “não dano”. É o princípio de não cometer violência contra outros seres, considerando que todos os organismos vivos têm uma centelha de energia espiritual divina. Este preceito afirma que os humanos não devem causar danos a outro ser vivo tanto em ações como em palavras e pensamentos; ahimsa é fundamental para o Raja Yoga, pois o êxito desta atividade requer a purificação prévia das intenções do praticante.

Tal conceito está presente em religiões indianas, como o hinduísmo, jainismo e budismo. A referência mais antiga sobre não violentar os animais está no Yajurveda, que foi escrito por volta de 1.200 a.C. No período védico (500 a.C.) ahimsa se tornou a virtude máxima e está citada nos Upanishads e nos livros sagrados indianos. No Mahabarata, um dos doismaiores épicos clássicos da Índia, lê-se várias vezes Ahimsa Paramo Dharma, quesignifica “a não violência é a mais alta virtude moral”. Em escrituras hindus (sec V e I a.C.), versos descrevem que a vida nobre é alimentar-se apenas de flores, raízes e frutas, procurando preservar as plantas; outros textos permitem peixes e carnes para tratar doenças e para mulheres grávidas, considerando a carne como superior a todos os outros tipos de alimentos para os convalescentes.

O jainismo tornou-se proeminente no século VI a.C., quando Lord Mahavira propagou esta religião; a palavra jaina significa conquistador. A tradição jainista é a mais radical, proibindo qualquer tipo de agressão a um ser vivo ou a ecossistemas. Apesar de ser, dentre as principais religiões indianas, a que possui menos adeptos, nenhuma outra foi tão longe quanto à não violência com os animais . O mínimo que se exige é o lacto-vegetarianismo, sendo que estudiosos defendem o veganismo, pois consideram a extração de leite uma agressão às vacas. Os jainas não comem tubérculos e preocupam-se em não causar danos a pequenos insetos: alguns adeptos não costumam sair de casa à noite, porque há maior risco de pisar em insetos durante o período noturno, colocam um pano na boca para não os aspirarem e varrem o chão por onde andam para evitar pisá-los.

O símbolo do jainismo é uma mão espalmada, indicando que devemos nos conter diante de qualquer impulso de violência que se configure em intenções ou atitudes. A mão com uma roda na palma representa o voto jainista de não violência e a palavra no centro dessa roda significa ahimsa; se ignorarmos tal aviso, iremos continuar indefinidamente, como a roda que gira, no ciclo de nascimento e morte.

Há, entretanto, contradições no comportamento dos indianos com os animais. Em textos antigos dos vedas, como o Rigveda, são mencionados sacrifícios rituais de animais e o cozimento de carne de boi, cabra e cavalo para alimentar os convidados; porém esse texto não é uniforme em suas prescrições, pois, se alguns versos elogiam a carne como alimento, outros recomendam a abstenção de carne, em particular a bovina. Gautama Buda – século VI, mesma época em que viveu Lord Mahavira – convenceu seus seguidores que possuíam antigos costumes védicos a desistir desses rituais. Os ensinamentos de Buda e de Mahavira, que receberam grande apoio de reis e ricos mercadores, espalharam-se por toda a Índia, Afeganistão e por várias regiões da Ásia, chegando posteriormente à China. O movimento de não matar animais foi tão poderoso que a religião védica desistiu do sacrifício animal e os brâmanes – membros da classe de sacerdotes de Brama, que constitui a primeira e mais elevada das quatro castas indianas – tornaram-se vegetarianos. O Manusmriti – código de Manu, compliado entre 200 a.C. e 200 d.C., fundamental para a codificação das normas sociais, religiosas e legais da Índia – foi explícito na importância de não matar, respeitando a senciência animal e exortando o vegetarianismo como caminho para se atingir moksha, a liberação da alma; muitos animais foram representados como veículos ou amigos dos deuses, o que lhes garantiu bastante segurança

No século VIII d.C., Adi Shankara, reverenciado como um grande mestre espiritual indiano, pregou a compaixão pelos animais, interferindo pessoalmente nos sacrifícios em vários templos da Índia. O advento do domínio islâmico no norte da Índia, que ocorreu no final do século XII, mudou em grande medida os hábitos, uma vez que os muçulmanos eram essencialmente carnívoros. Mas o desenvolvimento simultâneo do Bhakti (devoção) no hinduísmo levou a uma maior ênfase na bondade para com os animais, incentivando o vegetarianismo. Muitos governantes mongóis e islâmicos posteriores também proibiram a produção de vacas para abate.

Porém houve uma transformação radical com a chegada dos colonizadores ingleses. O primeiro matadouro na Índia, locais que não existiam até que os britânicos os introduzissem, foi construído em Calcutá, em 1760, por Robert Clive, então governador de Bengala; neste abatedouro, 30.000 animais eram mortos todos os dias para as autoridades britânicas e oficiais do exército. Vários outros matadouros foram criados para os exércitos britânicos de Bengala, Madras (hoje Chennai) e Bombaim; em 1910 havia 350 matadouros na Índia. A caça era uma recreação para os oficiais britânicos, que eliminaram os tigres de Madras, na época chamada de Puliyur (terra dos tigres), bem como os de outras cidades da Índia; também os guepardos e os leões foram dizimados. Antes do advento do domínio britânico, um número significativo de hindus e de muçulmanos decidiram preservar o gado e tinham até se amotinado contra tal domínio em 1.857, quando foram obrigados pelos colonizadores a lamber cartuchos untados com gordura de vaca e porco.

Embora a constituição indiana não se refira especificamente ao ahimsa, determina que todo habitante do país deve ter compaixão por qualquer criatura viva. A visão de que a vaca é sagrada na Índia, porém, ficou no passado, e hoje muitos indianos, assim como hinduístas, budistas e muçulmanos, não são vegetarianos. Em 2012 a Índia tornou-se o maior exportador de carne bovina do mundo, sendo hoje o quarto país nesse comércio.

No começo do século XX, o movimento Satyagraha, de Mahatma Gandhi, pregou a não violência e a justiça, o que levaria a encontrar satya – a verdade divina, e influenciou líderes do ocidente, dentre eles Martin Luther King, em sua campanha pelos direitos civis nos EUA, e o teólogo e médico alemão Albert Schweitzer, que considerava a proibição de ferir e matar “um dos maiores acontecimentos na história espiritual da humanidade”. Schweitzer desenvolveu a partir daí sua filosofia pessoal de Reverência pela Vida. Segundo Gandhi, “a não violência é comum a todas as religiões, mas encontrou a mais alta expressão e aplicação no Hinduísmo”. Sri Aurobindo, no entanto, considerava que este preceito havia atrasado a independência indiana, que aconteceu apenas em 1947, com o enfraquecimento da Inglaterra após a segunda guerra, originando a Índia propriamente dita e o Paquistão.

Além de recomendarem o ahimsa, os textos budistas aconselham evitar o mercado de bens resultantes de violência, como o comércio de armas, de seres vivos, de carne, de intoxicantes e de veneno. Para o budismo, salvar vidas de animais gera méritos para outras reencarnações; textos antigos afirmam que o estado mental da pessoa antes de sua morte é determinante no seu renascimento. Sidarta Gautama fez do ahimsa um princípio, não uma regra, o que permite aos budistas uma liberdade de ação.

Ahimsa não significa pacifismo, os criminosos devem ser punidos e vários textos clássicos discutem o que se deve fazer em situações de violência: toda guerra deve ser evitada por meio de um diálogo sincero; se for impossível, limitar o mal sem destruição aleatória e visar a vitória sem causar dor ao adversário; feridos, crianças, mulheres e civis devem ser poupados. Hoje observamos, até com alguma naturalidade, comportamentos exatamente opostos espalhados pelo mundo.

Propondo um princípio de autodefesa inspirado no ahimsa, o Aikido é uma prática desenvolvida no Japão, nos anos 1920, por Morihei Ueshiba. Visa neutralizar a agressão do atacante, não se opondo frontalmente ao adversário e redirecionando a ele a agressividade que recebe. Porém busca-se sempre evitar o conflito, visando a concórdia.

Os preceitos de ahimsa, vistos de uma maneira mais ampla e visando a preservação do planeta, mostram-se bastante opostos ao capitalismo, sistema extrativista que acentua a desigualdade social visando ao lucro de poucos, consome os recursos naturais de maneira predatória e provoca o aquecimento do planeta. Este comportamento pressupõe a superioridade do homem diante da magnitude da natureza, porém as consequências aparecem, e cada vez mais dramáticas.

Ahimsa é uma premissa para a paz interior e exterior na nossa existência, um estado de espírito que deve ser vivido de forma ativa, segundo as escrituras.

Roberto Cenni

maio de 2024

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