O artigo de Luiz Marques Abandonar a carne ou a esperança, que contém uma vasta pesquisa, com abundância de dados e gráficos, é de 2019. O artigo continua muito atual, dada inclusive a situação recente do país, com quase todos os seus biomas em chamas, depois da catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul.
A Amazônia enfrenta hoje uma das piores secas da sua história, com rios secos e não mais navegáveis, repletos de peixes mortos. Muitas comunidades ficaram sem água – sem água na Amazônia, uma das maiores reservas de água doce do planeta! – e sem suprimentos. O fogo queima a floresta, o mercúrio do garimpo envenena a água. Da área total da Amazônia brasileira, de aproximadamente 4,2 milhões de km², cerca de 19% (aproximadamente 798 mil km², (mais do que 3 vezes a área do estado de São Paulo) já foram desmatados. Dos 81% que restam, 3% são de vegetação secundária, ou seja, vegetação que cresceu novamente depois de ser desmatada. Os cientistas discutem se um ponto de não retorno já foi atingido.
Peixes morrem no Lago do Piranha em Manacapuru, durante seca no Amazonas — Foto: Rede Amazônica
A ministra do meio ambiente adverte que o Pantanal, também seco e em chamas, pode deixar de existir até o fim do século, ou ainda antes segundo o cientista do INPE, Carlos Nobre. Os rios que alimentam o Pantanal vêm do Cerrado, mas são agora muito menos caudalosos – devido às secas e ao uso abusivo da água pelas grandes monoculturas – e lá também a vegetação queima. O bioma Pantanal já perdeu 30% da sua vegetação nativa, ou seja cerca de 45 mil km2 do total de 150 mil km². O bioma perdeu também 68% de sua área alagada ao longo dos últimos 30 anos. Esse espantoso declínio é atribuído a uma combinação de fatores como secas severas, uso intensivo da água para irrigação agrícola e outros impactos humanos, como a construção de barragens e atividades de mineração na região. Esse processo reduziu a capacidade de recuperação hídrica do Pantanal, tornando o bioma cada vez mais vulnerável a incêndios e secas intensas
Pássaro carbonizado no Pantanal – foto: Lalo de Almeida
Como uma recente exposição fotográfica sobre os incêndios no Pantanal mostrou, o fogo se alastra com tal rapidez e intensidade, que pássaros não têm tempo de voar, animais não têm tempo de escapar, nem lugar para onde ir: são carbonizados em instantes por uma altíssima temperatura. Com grande sofrimento, morrem aos milhões – a nossa rica biodiversidade, a maior do mundo, é afetada de forma significativa.
Biomas brasileiros – imagem: brainly.com.br
Outros biomas brasileiros não estão em melhor situação. Em 2023, a perda de áreas naturais no Brasil atingiu a marca de 33% do território, afirma o Mapbiomas.
A Mata Atlântica originalmente cobria uma área de cerca de 1,3 milhão de km², em 17 estados. Hoje restam apenas cerca de 12,4% da sua vegetação nativa original (aproximadamente 161.200 km²). Mais de 87,6% do bioma foi perdido ao longo dos anos, devido à urbanização, à expansão agrícola e ao desmatamento ilegal. Em risco a biodiversidade do bioma, incluindo várias espécies endêmicas e ameaçadas de extinção, como a onça-pintada, cuja população fo drasticamente reduzida.
O Pampa tem mais da metade da sua área (54,2%) desmatada; no Cerrado, a savana mais biodiversa do planeta (5% da biodiversidade mundial), que abriga as nascentes de oito das doze bacias hidrográficas do Brasil, restam 50% da vegetação natural, em parte degradada; a Caatinga perdeu 46,6% da sua área.
Povos indígenas e comunidades tradicionais, os grandes preservadores do meio ambiente, são os que sofrem os maiores prejuízos pela destruição dos biomas. Mas, nas contas finais, todos perdem. O planeta e a humanidade perdem.
Incêndios
São Paulo, a maior cidade da América do Sul, enfrentou ondas de calor acima de 30 graus durante o inverno, com céu sem nuvens, mas branco da fumaça dos grandes incêndios no interior do estado. Nessa mesma situação se encontraram diversos estados do Brasil: Amazonas, Pará, Rondônia, Acre, Amapá, Goiás, Tocantins, Maranhão, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí…
Os incêndios são criminosos, segundo os especialistas (veja aqui o artigo de Carlos Nobre de 24 de setembro de 2024). É claro que incêndios também acontecem quando a vegetação, muito seca, é atingida por raios de temporais esporádicos. Mas nos meses dos grandes incêndios, não choveu…
A situação não poderia ser mais dramática. Dezenas de milhões de pessoas expostas a altos níveis de poluentes resultantes dos incêndios. O material particulado que respiramos provoca desde doenças respiratórias a câncer e mudanças no DNA. Trata-se de um grave problema de saúde pública.
Desmatamento na Amazônia/Foto: Christian Braga/ClimaInfo
Tudo começa com o desmatamento
Após a extração seletiva de madeira, vem o fogo, no que resta de floresta, para o plantio da soja e, sobretudo, para a abertura de pastos. A interação entre desmatamento, temperaturas elevadas, secas e incêndios criminosos está acabando com os nossos biomas e com o nosso futuro.
A pecuária foi a causa de cerca de 81% da devastação no chamado “arco do desmatamento” brasileiro, que inclui a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal. Do total de carne produzida, 25% é atualmente exportada e 75% abastece o mercado interno. E por mercado interno entende-se aquela porcentagem da população brasileira que tem os recursos econômicos para comer carne com frequência.
Pouco mais de 10% do desmatamento deve-se à agricultura, fundamentalmente à soja, que se destina a alimentar, no Brasil e no exterior, sobretudo porcos, frangos e peixes. Portanto, algo próximo de 90% da destruição da cobertura vegetal primária da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal deve-se à dieta carnívora.
A destruição é rápida. Vejamos alguns dados: a quase triplicação das cabeças de gado amazônico entre 1987 e 2003 (de 22 para 64,1 milhões de unidades) implicou a perda de cerca de 250 mil km2 de floresta amazônica, uma área equivalente à do estado de São Paulo! Em apenas 14 anos (1990-2003)! Mais 10 anos, em 2013, o número mais do que triplica e atinge 212 milhões de cabeças. Em 2023, segundo dados do IBGE, o rebanho brasileiro era de mais de 238 milhões de cabeças, e continua aumentando. A população de bovinos já superou a população de humanos, que em 2024 é estimada em 212,6 milhões.
Foto: Lanuovaecologia.it
Combater o ecocídio mudando a dieta
Termina com a seguinte conclusão o artigo de Luiz Marques, Abandonar a carne ou a esperança:
“Precisamos combater o ecocídio em curso de todas as formas legais possíveis. Mas a forma mais simples e direta de luta é simplesmente parar de comer carne ou reduzir drasticamente seu consumo.
Recapitulando: dado que quase 90% do desmatamento da Amazônia e uma porcentagem similar do desmatamento do Cerrado deve-se à pecuária bovina e à soja usada em grande parte para ração animal, e dado que 80% da carne bovina produzida no Brasil é consumida em nossos pratos, segue-se que somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.
A boa notícia é que somos ainda os protagonistas do drama. Onde não há demanda, não há oferta: não é justamente esse o lado bom de uma economia de mercado? O esforço internacional nesse sentido é crescente. Temos que fazer a nossa parte. Não é fácil ‘desmamar’ da carne, bem sei. Dietas adquiridas na infância enraízam-se em nós. Mas ajuda bastante saber que a carne que consumimos hoje é cheia de hormônios, antibióticos, conservantes e, sobretudo, é o resultado do inaceitável sofrimento animal. Além disso, segundo a OMS, há evidência limitada de que carne vermelha é cancerígena e evidência suficiente de que carne processada o seja.
Em suma, carne é uma droga pesada. O simples ato de renunciar ao bife nosso de cada dia criará a percepção de estarmos fazendo a coisa certa para nossa saúde, para a conservação das florestas e para criaturas capazes de sofrer como nós, além de uma expectativa muito mais positiva em relação ao nosso futuro e ao de nossos filhos. O tempo para isso é agora. Se adiarmos mais, perderemos de vez as florestas e, então, não haverá dieta alguma, nem mesmo a vegetariana, para nos alimentar.“
Maristela Jardim Gaudio – outubro de 2024
Imagem destacada: Rembrandt, Boi esfolado, 1665, Museu do Louvre