A morte entre os animais

Como bem sabemos, nós, humanos, tentamos esquecer a morte, negando sua existência e adiando ao máximo o momento final; o desaparecimento de alguém significante pode marcar para sempre nossas vidas, criando traumas insuperáveis. E os animais, como reagem à morte de seus iguais? Tendemos a considerar que são reativos pelo desejo de aproximá-los de nós, ou há comportamentos que comprovem isso?

Alguns países – como a Espanha, Reino Unido, França, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Peru e Colômbia, entre outros – modificaram suas legislações, elevando os animais à condição de seres sencientes, capazes de sentir emoções complexas. Considera-se que sejam sencientes principalmente os animais vertebrados, mas também muitos outros, como polvos e até insetos.

Hoje a crise climática é uma grande ameaça a todos os seres vivos e muitos animais têm morrido em enchentes, incêndios e na devastação de seus territórios. A afirmação corrente de que o único animal que sabe que vai morrer é o homem tem se mostrado falsa, pois se observa que indivíduos de muitas espécies percebem quando suas vidas estão ameaçadas, buscam proteção e recolhem-se quando pressentem a morte. E seus companheiros reagem de várias maneiras diante da perda de um semelhante, o que vem sendo observado por diversos cientistas.

Considerando a evolução no âmbito humano e no reino animal, Charles Darwin acreditava, no século XIX, que emoções deveriam ser semelhantes nas diferentes espécies. Nas suas primeiras observações de comportamentos emotivos em animais, atribuiu aos macacos a capacidade de sentir tristeza e ciúmes, prazer e constrangimento. Porém essas singularidades foram sendo desconsideradas pela corrente científica dominante, concluindo-se que as emoções presumidas seriam apenas uma projeção mental humana sobre os bichos, pois na realidade estes não possuíam sentimentos. Ainda hoje pensa-se que detectar reações humanas em animais, como o pesar, é anticientífico. Entretanto , a aceitação do afeto no animal vem ressurgindo, com relatos como o de Jane Goodal (que conviveu com uma tribo de chimpanzés na Tanzânia durante a década de 1960) sobre a morte por tristeza de um jovem chimpanzé semanas após a perda de sua mãe. E no Quênia, Cynthia Moss constatou que os elefantes cuidam dos companheiros moribundos e acariciam os ossos dos parentes mortos.

 “Os cientistas começam a prestar atenção ao sofrimento psicológico dos animais, tanto num contexto selvagem, como em zoos e em parques… Percebe-se hoje uma grande variedade de respostas animais a um companheiro ou membro do grupo morto”, afirma Barbara J. King, bioantropóloga que estuda a cognição e as emoções de animais.

Em seu livro How Animals Grieve, King descreve o retorno de pássaros para seus parceiros todos os anos, as diferentes reações de animais quando percebem a ausência de seus companheiros e eventuais amores, as amizades entre membros de diferentes espécies e histórias como a de uma gata doméstica que, ao perder sua irmã inseparável com quem dormia entrelaçada, ficou semanas andando pelo apartamento com miados de lamentação, passando depois por um longo período de apatia melancólica.

Segundo constatou, um conjunto de evidências sugere que diferentes espécies –  cetáceos, elefantes, grandes primatas, animais de fazenda e bichos de estimação – reagem com tristeza à morte de companheiros. O objeto de estudo da tanatologia evolucionária ou comparativa é investigar cientificamente a morte e o morrer em criaturas não humanas, que têm respostas diversas e até mais plurais do que nós. Esta ampla gama de espécies que lamenta a perda de seres próximos mostra que, embora várias reações ao luto sejam exclusivamente humanas, a capacidade que temos de sentir pesar tem profundas raízes evolutivas. Há 100 mil anos o homo sapiens decorava o corpo dos mortos com ocre vermelho, um tipo de ornamentação simbólica; no sítio arqueológico de Sunghir, na Rússia, um menino e uma menina foram enterrados há 24 mil anos com presentes, como presas de mamutes e animais esculpidos em marfim. Conclui-se que há milhares de anos nossos ancestrais vêm zelando por seus falecidos, e hoje pesquisadores têm mostrado que o lamento pelos mortos não é exclusivo dos seres humanos.

Verificou-se que babuínos e chimpanzés mães, na África, por vezes carregam o corpo de seus filhotes mortos por dias, semanas ou até meses. Iain Douglas-Hamilton, da organização Save the Elephants, observou que fêmeas de elefantes ficaram desorientadas diante de uma companheira morta, puxando e cutucando o corpo com a tromba e as patas, ou balançando-se sobre a carcaça. Constatou que os elefantes manifestam uma reação generalizada nessa ocasião, não apenas lastimando a perda de seus parentes, mas também de membros de outras famílias. Os cetáceos parecem também ter esse comportamento de tristeza, quando nas Ilhas Canárias vários golfinhos cercaram uma mãe que amparava seu filhote morto: depois de alguns dias, a mãe desistiu e seus acompanhantes sustentaram o cadáver no próprio dorso. Sabe-se que as girafas são bastante sociáveis; em 2010, a bióloga de vida selvagem Zoe Muller viu em um santuário no Quênia o nascimento de um filhote deformado, acompanhou todo o cuidado da mãe durante a vida da sua cria deficiente e a solidariedade das girafas fêmeas após a morte do filhote, quando muitas se alternaram na guarda do corpo, por vezes cutucando-o com o focinho, buscando reanimá-lo para impedir que predadores o levassem.  

O etólogo Mark Bekoff, da University of Colorado, afirma que o potencial de amor é forte em espécies como coiotes, lobos e muitas aves, especialmente gansos, porque os parceiros machos e fêmeas alimentam e criam seus filhotes juntos, defendem unidos seus territórios e sentem a ausência do outro quando separados.  

Em seu livro Animals Matter,  Bekoff relata o que aconteceu quando uma coiote estimada por sua matilha começou a se afastar, voltando eventualmente, e nesses momentos recebia lambidas, enquanto sua prole rolava agitadamente a seus pés. Ao desaparecer em definitivo, seus companheiros procuraram por ela por mais de uma semana e a vivacidade do bando esmoreceu.

Em seu livro Playing Possum: How Animals Understand Death, Susana Monsó conta que, quando o gambá se sente ameaçado, paralisa-se, sua temperatura corporal diminui intensamente, sua respiração e frequência cardíaca caem ao mínimo, e suas glândulas simulam o cheiro de um cadáver em decomposição; com essa atitude faz-se de morto para se proteger de predadores. Relata histórias de formigas que participam de seus funerais, chimpanzés que limpam os dentes de seus mortos, corvos que evitam os lugares onde viram um cadáver da sua espécie, elefantes obcecados por coletar o marfim de seus mortos, e baleias que carregam a carcaça de seus semelhantes por semanas. Suzana Monsó, dentre as principais especialistas da atualidade em cognição animal e ética, mostra que o conceito de morte não é uma característica exclusivamente humana e está amplamente presente no reino animal.

Os corvos, aves sabidamente complexas e inteligentes, têm  comportamento peculiar em relação à morte. Quando um membro do bando falece, os pássaros volteiam o corpo grasnando freneticamente, o que pode ser considerado um ritual fúnebre. Os corvos não só se lembram daqueles que lhes causaram perigo, reconhecendo rostos humanos e expressões faciais, como também compartilham essa informação com o bando, formando uma rede de advertência em sua comunidade. Kaeli Swift, ecologista comportamental especialista em corvídeos na Universidade de Washington, realizou o seguinte experimento: um pesquisador com máscara de látex (para evitar ser vítima a vida inteira de ataques de corvos desse grupo) segurou um corvo morto onde os pássaros se alimentavam. Estes agiram aversivamente à comida oferecida por Swift, e agruparam-se em um comportamento defensivo característico de quando percebem situações ameaçadoras. Segundo Swift, os corvos veem a morte como uma condição que pode ser entendida, é um sinal de perigo, e perigo é algo a ser evitado. O efeito desse experimento foi duradouro, porque, mesmo após seis semanas, muitos pares de corvos demonstraram-se defensivos diante do indivíduo mascarado. Porém, quando são expostos a outras espécies mortas, não esboçam qualquer reação.

O primatologista e etólogo holandês Frans de Waal atua no Departamento de Psicologia da Universidade de Emory, em Atlanta ( EUA), e trabalha principalmente com chimpanzés e bonobos . É autor de vários livros, incluindo Eu, primata e A era da empatia, publicados no Brasil. Na entrevista à rádio Deutsche Welle  Natureza – Existe luto no reino animal? , explica que, enquanto algumas espécies reagem apenas fisiologicamente à morte de um companheiro, outras ficam de luto por um longo tempo; há espécies de macacos que aparentam saber que a morte é irreversível… “Vou contar uma história sobre isso. Alguns bonobos encontraram uma cobra bastante perigosa na floresta e ficaram com muito medo dela, cutucando-a com paus. Em algum momento, a fêmea alfa, que é dominante sobre o macho, pegou a cobra pela cauda, bateu-a contra o chão e a matou. A partir desse momento, os jovens bonobos pegaram a cobra e penduraram-na em seus pescoços, brincando e desfilando com ela. Isso indica que eles sabem que se trata de um animal perigoso com o qual você deve ter muito cuidado, mas que uma vez que está morto, dá para gracejar com ele. Então, eu acho que eles entendem que a morte é uma condição permanente.”

“Com primatas, como chimpanzés, não é incomum que, se um deles morre em um grupo, os outros parem de comer por alguns dias. Eles ficam completamente silenciosos, olham para o cadáver por um longo tempo, tentam reanimar o corpo. Isso é tipicamente humano; hoje nós não fazemos mais isso, mas nos tempos passados as pessoas faziam “,  afirmou Franz de Waal.  O especialista considera que o luto típico acontece principalmente com as mães e filhos em mamíferos. Normalmente encontra-se luto entre animais que têm relações individuais; se o parceiro morre, eles são muito afetados por isso. Todos os mamíferos têm esses laços em algum grau e todas as aves também, já que muito frequentemente vivem em pares. Alguns pássaros que ficam juntos por toda a vida às vezes até param de comer e morrem se o parceiro morre. Isso é verdade no caso dos gansos, mas também de muitas aves da ordem Passeri [que cantam], as quais têm laços de longo prazo. Mesmo entre diferentes espécies pode haver reações expressivas, como aconteceu com o cachorro Hachiko, em Tóquio, no Japão; depois que o dono morreu, Hachiko continuou indo durante dez anos até o trem no qual o homem costumava chegar na estação.

Ao ser arguido sobre quais animais comportam-se de maneira mais  impressionante diante do luto, Franz de Waal respondeu serem os elefantes, “porque eles voltam para os ossos daqueles que perderam. Se um elefante morre – o que no momento, com a caça ilegal, ocorre com frequência – os outros elefantes inspecionam os ossos do animal morto, se conseguem encontrá-los…. o  meu palpite é que eles voltam para os ossos um pouco como nós, quando vamos a um cemitério.” Esse conhecimento , considera de Waal, contribui para a forma como vemos e tratamos os animais, levando a implicações éticas. Há vários relatos de elefantes-africanos que retornam ao lugar onde estão os corpos de seus filhos ou membros próximos da manada, muitos foram vistos remexendo os ossos e permanecendo longos períodos em silêncio frente à “sepultura”. Diversamente, segundo pesquisadores, os elefantes-asiáticos parecem querer evitar o local em que um semelhante falecido se encontra. Conclui-se que os elefantes identificam os restos mortais como parte de um indivíduo que não existe mais e estão entre os animais que mais simbolizam a morte.

Os insetos que vivem em colônias – como as formigas, os cupins e as abelhas –  reagem rapidamente diante de seus mortos. Muitas vezes os indivíduos de um ninho ou colmeia separam o cadáver do grupo, enterrando-o ou mesmo comendo-o, prática essa para proteger seu coletivo de possíveis doenças.

Pesquisadores da Universidade de Michigan, nos EUA, ao tentarem descobrir se as moscas-das-frutas desenvolviam maior imunidade após contato com moscas doentes, obtiveram dados inesperados. Esses insetos expostos a cadáveres de moscas de sua espécie envelhecem com mais rapidez, morrem mais cedo e são evitados pelo enxame, como se fossem um presságio da morte . A experiência consistiu em apresentar cadáveres às moscas-das-frutas vivas e registrar suas funções cerebrais em laboratório, observando neurônios específicos ativados nas moscas ao verem suas iguais mortas; usando um corante fluorescente para isolar esses neurônios, perceberam que as moscas que os tinham perdiam gordura armazenada e morriam mais rapidamente. Quando tais neurônios foram desativados em laboratório, a visão das moscas-das-frutas mortas não interferiu na expectativa de vida das moscas que as viram. Pretendem-se novos estudos que mostrem o impacto da percepção dos animais na sua saúde e longevidade, o que talvez colabore para compreender como tais fatores também afetam os seres humanos.

Procuramos sempre nos aproveitar das plantas e dos animais conforme nossa conveniência, na visão antropocêntrica de que, se esses seres vivos existem, devem ter alguma utilidade para nós. O progresso na área das pesquisas em animais evidencia de diversas maneiras que todas as criaturas podem padecer de sofrimento… Quando essas constatações vão resultar em maior respeito por elas? E o que mais será ainda descoberto, diante de tantas revelações cada vez mais surpreendentes?

Roberto Cenni                                                                                                   

agosto de 2025

P.S. – algumas das informações acima relatadas foram obtidas do artigo “Quando os Animas Morrem”, de Barbara J. King, publicado na revista Scientific American, em edição brasileira número 56.

Foto: filhote tenta acordar a mãe morta (BBC -<https://www.bbc.com/staticarchive/f59dbf5b7b862ef771ca1cea181811366c69325c.jpg>).

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