O livro já clássico sobre as tentativas sistemáticas das corporações de manipular e distorcer os fatos e as informações científicas em prol de seus interesses é o de Naomi Oreskes e Erik M. Conway, Merchants of Doubt (Bloomsbury, 2010). Veja-se a respeito
http://www.web.uwa.edu.au/__data/assets/pdf_file/0011/1633556/
UWANaomi_Oreskes_Lecture_Flyer.pdf
A carteira de investimentos das corporações no descrédito da ciência é muito variada. Ela começa pela intimidação e pela censura na mídia ou através de pressões dos governos, por exemplo, dos EUA e do Canadá. Em 2006, James Hansen denunciou uma tentativa da Casa Branca, então ocupada por George W. Bush, de censurá-lo (Cf. Andrew C. Revkin, “Climate Expert Says NASA Tried to Silence Him”. New York Times, 29/I/2006).
De 2006 data também uma instrução do governo do Canadá, atualizada em 2012, proibindo cientistas federais de falar à imprensa sem a mediação de uma assessoria de imprensa. De quatro mil cientistas canadenses entrevistados por Mark Frary numa pesquisa publicada em 2014, no Index on Censorship, apenas 14% responderam “sentirem-se aptos a compartilhar uma preocupação sobre saúde pública e segurança ou uma ameaça ao meio ambiente sem medo de retaliação ou censura por parte de seu departamento ou agência” (Cf. Rachael Jolley, “Lands of the free?”. New Scientist, 12/IV/2014, p. 26).
As corporações investem também, e sobretudo, na desmoralização de cientistas por esses “mercadores de dúvidas” de que falam Oreskes e Conway, prática que vitimou, entre tantos casos, Ben Santer, em relação ao relatório de 1995 do IPCC, ou Michael Mann, em relação ao “taco de hockey” (Cf. Mark Bowen, Censoring Science: Inside the Political Attack on Dr. James Hansen and the Truth of Global Warming, Nova York, Dutton, 2008; Raymond S. Bradeley, “Global Warming and Political Intimidation”, Thomson Shore, 2011).
Além disso, as corporações financiam e monitoram as pesquisas universitárias (Cf. “Heads They Win, Tails We Lose. How Corporations Corrupt Science at the Public’s Expense”. Union of Concerned Scientists, fevereiro de 2012; Wenonah Hauter, “University Research, Sold Out”. Other Words, 26/XII/2012), como o demonstrou mais uma vez, em fevereiro de 2015, o clamoroso caso do desmascaramento de Wei-Hock (Willie) Soon, o poster child dos negacionistas, inclusive por causa de seu prestigioso vínculo com o Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics. Suas publicações, cujo objetivo precípuo era contestar o caráter antropogênico das mudanças climáticas, foram secretamente financiadas e mesmo previamente aprovadas por corporações, em especial pela Southern Company Services, uma empresa geradora de energia por termelétricas movidas a carvão. (Cf. David Hasemyer, “Documents reveal Fingerprints on Contrarian Climate Research”. Inside Climate News, 21/II/2015; Suzanne Goldenberg, “Work of prominent climate change denier was funded by energy industry”. The Guardian, 21/II/2015; “No strings”. Editorial da Nature, 518, 25/II/2015).
Fora da Universidade, as corporações promovem think tanks cujo objetivo é fomentar, nas palavras da Academia de Ciências dos Estados Unidos, “uma ação organizada e deliberada para induzir o debate público em erro e distorcer a representação da opinião pública sobre as mudanças climáticas”. Uma centena desses think tanks norte-americanos receberam em torno de 120 milhões de dólares entre 2002 e 2010, informa o jornal The Guardian. Whitney Ball, Presidente da Donors Trust and the Donors Capital Fund, uma empresa que canaliza doações de ao menos um milhão de dólares para esses grupos, explicou ao jornal britânico o quanto a questão ambiental é uma bandeira unificadora do espectro ideológico da direita norte-americana:
“Se você olha para os libertarians [termo que designa nos EUA a extrema direita, como o Tea Party, por exemplo], tenderá a ver muitas diferenças em relação aos conservadores no que se refere a questões como defesa, imigração, drogas, guerra, etc. Mas quando se trata de questões ambientais, as diferenças, se houver, não são tão pronunciadas”.
(Citado por Suzanne Goldenberg, “Billionaires Secretly Funded Vast Climate Denial Network”. Mother Jones, 15/II/2013: “If you look at libertarians, you tend to have a lot of differences on things like defense, immigration, drugs, the war, things like that compared to conservatives. When it comes to issues like the environment, if there are differences, they are not nearly as pronounced”).
A pressão das corporações sobre a imprensa e a própria grande imprensa corporativa produzem distorções importantes na qualidade da informação veiculada. Assim, enquanto os cientistas chamados negacionistas ou “climatocéticos” representam uma fração ínfima da comunidade científica (inferior a 3%), as análises de Reiner Grundmann e de Mike Scott sobre a imprensa de diferentes países mostram que, entre 2000 e 2010, 20% dos cientistas citados no corpus analisado contestavam o consenso científico sobre as mudanças climáticas.
Por trás de boa parte dessas manobras espúrias estão os Irmãos Koch e outros bilionários, como Rex Tillerson e Donald Trump, que de há muito ocupam um lugar emblemático na “história da infâmia”, razão pela qual Crisálida repercute, abaixo, a resenha de Felipe Gutierrez sobre o bom livro “Dark Money: The Hidden History of the Billionaires Behind the Rise of the Radical Right”, de Jane Mayer.
Luiz Marques
Os irmãos Charles e David Koch são a segunda família mais rica dos EUA, segundo a “Forbes”. A fortuna veio de refinarias do pai, mas a geração atual diversificou o negócio e, hoje, eles produzem de copos a asfalto.
Eles também são os protagonistas de “Dark Money”, livro-reportagem da jornalista Jane Mayer, escolhido como um dos dez melhores de 2016 pelo “The New York Times”.
Os Koch, há décadas, praticam um ativismo político-econômico que ganhou visibilidade nos anos Obama.
Desde os anos 1970, eles se ligaram ao libertarismo, uma visão anabolizada de que o capitalismo não deve ter nenhum tipo de restrição –mesmo que isso signifique provocar dano ambiental significativo, por exemplo.
“Dark Money” descreve as maneiras ativas pelas quais essas ideias foram levadas das margens do conservadorismo para o centro do debate econômico.
O ponto da autora é que, para os Koch e para os ricos ao redor deles, o libertarismo é não só o modelo econômico correto mas também aquele que os favorece.
O relato de Mayer mescla a história da família (que envolve brigas entre irmãos e negócios com Hitler e Stálin) com a narrativa de como bilionários, mesmo antes dos Koch, tentam influenciar a política dos EUA.
A primeira incursão dos Koch para tentar moldar o debate nos EUA deu-se em 1980, quando David se candidatou a vice-presidente pelo Partido Libertário. Mesmo com um gasto em campanha fora dos padrões para a época, a tentativa foi um fracasso.
Depois da derrota, os irmãos decidiram mudar seus objetivos. Segundo Mayer, eles concluíram que políticos são atores que leem palavras de um roteiro e que o papel deles deveria ser o de escrever esse roteiro.
Eles começaram a financiar uma série de iniciativas para que as convicções deles a respeito de um governo mínimo encontrassem ressonância em um público e um eleitorado amplos.
Para dar credibilidade às ideias, patrocinam uma miríade de “think tanks”, como o Cato Institute e a Heritage Foundation, cadeiras acadêmicas em universidades prestigiosas, intelectuais e livros.
Nos anos mais recentes, estiveram ligados a movimentos populares conservadores, notoriamente o Tea Party. Os Koch negam envolvimento com este último, mas Mayer liga a organização do Tea Party a uma série de institutos, entre os quais o Americans for Prosperity, que são bancados pelos irmãos.
Uma mudança nas regras eleitorais dos EUA em 2010 abriu a possibilidade para mais um meio de influenciar o debate: anúncios eleitorais. Grosso modo, uma decisão da Suprema Corte dos EUA concedeu às organizações o mesmo direito ao discurso que têm as pessoas.
Uma das consequências é que elas podem veicular propaganda crítica a um candidato, mesmo sem estarem formalmente vinculadas ao seu oponente. Mayer descreve que organizações de fachada bancadas por bilionários, que só funcionam como uma caixa de correio, passaram a fazer ataques a candidatos que não compactuassem com o que consideram correto.
Alguns exemplos do que eles combatem são: taxar poluentes, subsidiar planos de saúde para pobres, estabelecer um salário mínimo etc.
CARIDADE
O dinheiro que irriga essa estrutura vem de uma espécie de isenção fiscal. É possível evitar impostos de herança ao montar um truste destinado a incentivar a pesquisa, a ciência etc. Os rendimentos dos fundos vão para uma associação e, depois de um tempo, os titulares podem sacar o principal sem pagar impostos. Não é claro se o uso desses rendimentos para incentivar a divulgação de uma visão econômica está de acordo com as regras, mas tanto bilionários conservadores como liberais fazem isso.
As doações dos trustes familiares a essas associações podem ser feitas anonimamente, e é daí que vem o “dark money” (dinheiro escuro) do título do livro. Essa arquitetura não foi invenção dos Koch: há uma tradição de ultra-ricos que usavam essa saída para emplacar seu ideário econômico. Tampouco se trata de uma estratégia de conservadores, pois há bilionários liberais que fazem o mesmo.
As inovações dos Koch, para Mayer, são a escala e a organização. Além de doar o próprio dinheiro, eles também atuam como arrecadadores entre outros bilionários de uma rede que montaram e que se reúne duas vezes por ano.