“Não é incompetência nem descaso, é método”, diz Eliane Brum, na sua reflexão sobre o contexto da “execução”, como, com muita indiferença, aventou o presidente Jair Bolsonaro, falando do funcionário da Funai, indigenista e ativista Bruno Pereira, e do jornalista britânico apaixonado pelo Brasil, Dom Phillips, logo depois do desaparecimento de ambos. Hoje sabemos, foram mesmo executados. Assassinatos que indignaram o mundo.
É método, sim, como diz a jornalista, método para executar um projeto colonial, projeto semelhante ao de vários países europeus, que nos séculos XV e XVI conquistaram terras e povos nas Américas, na África e na Ásia, enquanto o Império Russo preferia conquistar terras e povos nas suas fronteiras, que continuaram a alargar-se, chegando assim à Europa do leste, ao Pacífico, à Sibéria. São histórias muito diferentes, mas o projeto é sempre o mesmo: conquistar, ocupar, explorar, catequizar na língua do conquistador, submeter e integrar, mesmo que “integração” significasse apenas acrescentar uma massa de indivíduos destituídos de sua independência, subsistência e cultura, à faixa de extrema pobreza da sociedade dos colonizadores. Foi assim com a conquista portuguesa da Terra Brasilis. Quanta madeira e quanto ouro levaram? Que florestas destruíram, quantas tribos indígenas exterminaram, durante e depois de tentar escravizá-las sem sucesso? Conquistada a independência, que este ano festejará seu bi-centenário, o Brasil soberano assumiu a mesma tarefa dos colonizadores: conquistar, explorar, catequizar e subjugar as populações originárias. Desse ponto de vista, muito pouco mudou nos últimos 500 anos
O projeto colonial do atual governo é o de continuar a obra iniciada nos governos militares: conquistar e explorar a floresta amazônica, catequizar e subjugar os povos que a habitam. Depois da Transamazônica, estrada que como um rio atravessa a Amazônia, surgiram os “afluentes”: estradas menores que se ramificam a partir da principal. A floresta foi comida pelas bordas e pelas suas entranhas. Desmatar, vender a madeira, minerar em grande escala, envenenando rios, animais e indígenas, ocupar grandes áreas, regularizá-las, criar um mercado imobiliário vendendo terrenos a pecuaristas e agronegócio, enfraquecer e ocupar os órgãos de controle, fazendo-os atuar na direção oposta àquela para a qual foram criados, como acontece com a Funai e o Ibama, acuar e atacar os indígenas – assim tem sido a conquista da Amazônia.
A tríplice fronteira
E chegamos ao Vale do Javari, zona remota da Amazônia, área enorme, grande quase como Portugal, onde habitam mais de 6.500 indígenas, de 26 etnias, grande número de tribos nunca antes contatadas, zona na qual esse governo, que pretende soberania, desistiu do poder, não se sabe se conquistando com isso algum benefício, ou simplesmente porque admite a sua incapacidade. Como muitos artigos de várias publicações deixaram claro (assinalamos a revista Piauí, o Estado, a Deutsche Welle, o Nexo Jornal, a Unicamp), o Vale do Javari é o lugar onde todos os crimes se encontram e convivem, tendo achado um modus vivendi que ignora o Estado, a constituição, as leis, o meio ambiente, os povos da floresta.
A tríplice fronteira, Brasil, Peru e Colômbia, foi abandonada pelos seus guardiões oficiais, as Forças Armadas. Por lá entra a cocaína que vai abastecer o Brasil (o segundo país que mais consome essa droga no mundo), os Estados Unidos (o primeiro consumidor) e a Europa. O tráfico de cocaína movimenta bilhões de dólares. Ainda mais do que o garimpo de ouro. Muitíssimo mais do que a muito rentável atividade de derrubar a floresta e vender madeira, mais do que a regularização e venda de grandes áreas para a pecuária e o cultivo de soja. O governo brasileiro apoia todas estas últimas atividades e faz vista grossa para o tráfico. Por quê? O mapa do crime na região existe, e tem sido objeto de estudo do geógrafo Aiala Colares de Oliveira Couto, da Univ. Estadual do Pará. Só o que falta é uma ação do Estado Brasileiro e das suas Forças Armadas..
Drogas e crimes ambientais
O tráfico de cocaína e de armas e os crimes ambientais se apoiam mutuamente. O Vale do Javari é o lugar onde todos os crimes se encontram. Explica muito bem Vinícius Valfré, em sua matéria no Estadão de 16.6.22:
“Responsável pela criação da Divisão de Repressão aos Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da PF nos anos 2000, o delegado Jorge Pontes afirmou que o interesse de narcotraficantes em explorar criminosos ambientais se dá pela diferença nas punições aos dois crimes. A extração ilegal de recursos naturais tem pena considerada branda, na comparação com a de tráfico internacional de drogas. ‘Os traficantes perceberam que essas atividades são extremamente lucrativas e a reprimenda para esses crimes ambientais é muito baixa’, disse Pontes. ‘E os crimes ambientais têm suporte de políticos, porque essas atividades financiam campanhas.”
A ligação entre o tráfico de cocaína e as cidades da região é essencial para os traficantes, que conseguem, através da pesca, da caça, do comércio, e de serviços como restaurantes e hotéis, lavar o dinheiro do tráfico e criar uma aparência de legalidade, com a cobertura dos políticos locais. Além disso, a exportação de madeira tem fornecido o esconderijo para a exportação de cocaína. Nove toneladas dela, escondidas em carga de madeira, foram apreendidas entre 2017 e 2020, como bem explicou a Agência Pública.
Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, que colocaram o Vale do Javari no centro da atenção mundial, revelam também que se trata de uma história antiga. O tráfico de cocaína na região é apontado desde os anos 1980, mas não na mesma escala. A caça e a pesca ilegais são atividades lucrativas há muito tempo, como revelam estudos: 78% de toda a carne animal que circula na região é proveniente de bichos brasileiros mortos de maneira ilegal, uma vez que a caça e a pesca são apenas permitidos para subsistência dos indígenas. A Agência Pública foi responsável por uma série rica em detalhes: Amazônia Sem Lei.
Heróis e vítimas
Não faltam heróis e mártires na história recente da Amazônia. Homens e mulheres corajosos denunciaram os crimes contra os povos da floresta e contra o ambiente. Mas foram ignorados, transferidos, punidos ou assassinados. O próprio Bruno Pereira acabou exonerado da sua posição na Funai pouco depois de coordenar uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da terra indigena Yanomami, em Roraima. Maxciel Pereira dos Santos, da Funai, foi assassinado em Tabatinga, em plena luz do dia, diante da esposa e da enteada, uma semana após participar da apreensão de mais de uma tonelada de peixe e caça, em 2019. Ninguém foi preso, a família investiga por conta própria. Getúlio Dornelles Larratea, ativista ambiental e professor da UFSC, foi espancado e morto após denunciar ocupações ilegais em Pântano do Sul. Nesta última semana, pelo menos um indigena Guarani-Kaiowá foi morto e alguns ficaram feridos, tentando reaver terras no Mato Grosso do Sul. O delegado da PF, Alexandre Saraiva, depois de fazer a maior apreensão de madeira ilegal da história (226.000 metros cúbicos), denunciando o então ministro Ricardo Salles, foi retirado da Amazônia e transferido para Volta Redonda. Esses são só alguns exemplos de uma longa lista .
As maiores vítimas da impunidade que reina na Amazônia são os indígenas, o meio ambiente e os animais. As vítimas das quais nos esquecemos, porque menos óbvias, somos nós próprios, muito distantes da Amazônia, mas dependentes dela, como já há muito tempo sabemos. Com a Amazônia em franco processo de savanização, não mais se formarão os “rios voadores”, consequência da transpiração das árvores. Portanto, não haverá chuvas no centro-oeste do Brasil. Não haverá colheitas. Não haverá alimentos. Os agricultores, os pecuaristas e os governantes deveriam saber: destruir a floresta é destruir o futuro – o nosso e o das próximas gerações.
E o que fazer?
Nas próximas eleições, não bastará mudar o executivo. Também precisam ser substituídos deputados federais e senadores, governadores e deputados estaduais, enfim, todos os políticos que defendem os interesses econômicos de pecuaristas e do agronegócio em geral, das grandes mineradoras, do tráfico de drogas e armas, às custas da vida dos povos da florestas, do meio-ambiente e da biodiversidade. Tarefa hercúlea, talvez impossível, que requer também uma profunda transformação cultural. Mas se não começarmos já…
Maristela Jardim Gaudio
Imagem: Atalaia do Norte – Nailson Tenazor (Portal da Amazônia)