O que se entende pelo projeto de lei 490, defendido atualmente pela bancada ruralista da câmara de deputados, passou por uma transformação radical desde sua primeira redação em 2007.
Originalmente, o projeto de lei de Arthur Maia, do partido DEM, previa que a demarcação de terras indígenas passasse das mãos da FUNAI para as mãos do Congresso, ou seja, de um órgão cuja missão era zelar pelo bem estar dos povos originários, aviltado por séculos desde o descobrimento do Brasil, para os parlamentares, entre os quais os interesses dos empresários ruralistas estão particularmente representados.
Em 2009, no julgamento Raposa do Sol, a demarcação dessas terras indígenas de Rondônia foi aprovada com base no fato de que elas estavam em poder dos povos nativos desde a época da constituição de 1988. O argumento do STF serviu daí para frente aos interesses econômicos de exploração da Amazônia, uma vez que os povos que haviam sido expulsos antes de suas terras não teriam mais direito a elas.
Finalmente, em 2013, é proposto um apensado (isto é, vinculado) ao PL 490, o PL 6818, pelo deputado Geraldo Simões, do PT da Bahia, em que o marco temporal é formulado. Validavam-no não só o julgamento Raposa do Sol, mas também julgamentos posteriores que ratificaram sua lógica.
No entanto, se o projeto do marco temporal foi proposto pelo PT, hoje em dia o partido tem se voltado contra o PL 490, junto com PSOL, Rede, PCdoB, PSB, PDT.
Impulso do Marco Temporal no governo Temer, em 2017, e no governo Bolsonaro
Um excelente artigo de Rubens Valente e Julio Wiziack flagra a assinatura do parecer de Michel Temer no dia 19 de março de 2017 “‘para determinar que toda a administração federal’ adote uma tese cara à bancada ruralista no Congresso sobre os processos de demarcação de terras indígenas. A medida deve paralisar 748 processos hoje em andamento no país, segundo estimativa da AGU” (destaque nosso no trecho acima).
O artigo situa o parecer numa rede de interesses: o de Temer sendo o de se livrar de processos em que era acusado de corrupção, o da bancada ruralista na câmara sendo o de inviabilizar as demarcações para poder usar as terras indígenas. Além disso, faz uma análise das consequências, para os povos nativos e para a nação, de tal “parecer vinculante” à tese do marco temporal.
Em 12 de maio de 2021, já no governo Bolsonaro, foi apresentado o Substitutivo ao PL n.º 490/2007 – que absorveu a tese do marco temporal, antes no PL 6818 apensado – à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, integrada por muitos representantes da bancada ruralista. A proposta do Substitutivo, inclusive, aceita pelo relator inicial do projeto, Arthur Maio, partiu da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, como se pode ler aqui.
Em 23 de junho de 2021 a CCJ aprovou, por 41 votos a 20, que o PL 490/2007 entrasse na pauta da votação da câmara.
Veja aqui a lista completa dos deputados que votaram a favor ou contra o PL.
Veja também aqui “como os partidos se posicionaram na votação do PL 490/2007 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados”.
Qual é o problema, para os indígenas e para o país, deste projeto de lei?
Seguem algumas consequências do PL 490:
— Dificulta o processo já lento de demarcação de terras indígenas, permitindo que ele seja questionado pelo congresso em todas as fases de sua tramitação. Faculta, assim, que os interesses agropecuários obstem ao máximo a demarcação.
— Impede que grupos indígenas expulsos de suas terras durante a ditadura militar, por exemplo, reivindiquem seu retorno.
— Permite que povos isolados sejam contatados, desde que outros grupos econômicos tenham interesse por suas terras e elas não estejam ainda demarcadas. Com isso, a sobrevivência desses povos é posta em altíssimo risco, uma vez que eles não possuem anticorpos para doenças trazidas de fora.
— Mesmo áreas demarcadas podem ser contestadas devido ao critério do marco temporal, junto à utilidade de terras para outros fins.
O Instituto Sócio Ambiental emitiu uma nota técnico-jurídica sobre o Substitutivo ao PL 490, e a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) também emitiu outra, na mesma época. Nelas se podem conferir vários argumentos sobre o caráter prejudicial do PL aos povos originários, à conservação ambiental e ao país como um todo.
Julgamento no STF sobre as terras da tribo Xokleng
A aprovação ou não do PL tem corrido por duas vias. Uma no congresso. Outra, que parecia bastante decisiva, no Superior Tribunal Federal. Como o julgamento foi parar no STF?
Com base no julgamento de 2009 das terras Raposa do Sol, a tese do marco temporal:
“acabou sendo acolhida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) em 2013. Na ocasião, a corte confirmou uma decisão da Justiça de Santa Catarina de 2009, que concedera ao Governo daquele Estado a reintegração de posse de uma área localizada em parte da reserva indígena Ibirama-Laklãnõ. Ali vivem os povos Xokleng, Guarani e Kaingang. A Fundação Nacional do Índio (Funai) recorreu à decisão e ela foi parar no Supremo. A ação ganhou ainda mais importância em 2019, quando ganhou status de repercussão geral. Isso significa que a decisão tomada pelos ministros agora servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.” (Veja aqui o artigo completo do El País).
O ministro Edson Fachin votou contra a tese do marco temporal por ocasião desse processo; o ministro Nunes Marques, a favor. Alexandre de Moraes pediu vistas (um tempo para analisar melhor a questão antes de votar). A votação iria continuar no dia 23 de junho de 2022, mas no dia 2 de junho o presidente do STF, Luiz Fux, retirou o tema da pauta por tempo indeterminado. A pressão feita por Jair Bolsonaro a favor do marco temporal é imensa, a ponto de ele dizer que não aceitaria uma decisão desfavorável do STF.
Se o marco temporal for julgado inconstitucional pelo STF, o PL 490 sofrerá um grave abalo, tornando-se praticamente inviável. Do contrário, se aprovado pelo STF, irá a plenário na câmara e, se aprovado, ao Senado. Mas com o adiamento do julgamento por prazo indeterminado, existe o risco de o projeto de lei ir antes à votação no congresso. Vale ler a análise de 6/6/22 da reputada antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e de dois autores da área jurídica sobre este adiamento.
Concluindo…
Entretanto, o processo de demarcação e homologação das terras indígenas já foi na prática suspenso, e mesmo as terras já demarcadas, quanto mais as que ainda não o foram, têm sofrido um processo aceleradíssimo de invasão por garimpeiros e pecuaristas. Como se sabe, órgãos fiscalizadores foram demolidos, enfraquecidos. O governo sequer cumpre as ordens do STF para evitar com urgência o genocídio de povos indígenas, conforme já repercutimos em outro post.
O juízo emitido pelo presidente e por aqueles que lutam para que o PL 490 seja aprovado sempre se pauta pelos desenvolvimentos de atividades econômicas na Amazônia, essas mesmas que têm desmatado e envenenado os rios com mercúrio usado no garimpo, e em outras regiões do país cobiçadas pelo agronegócio.
Em suma, o PL 490 tampouco se harmoniza com as radicais necessidades de conter a crise climática que implicará tragédias para a humanidade. Ele vai na contramão dos benefícios ao gênero humano, e mantém o privilégio da exploração predatória caracterizadora da história do Brasil desde 1500.
No mais, acaba prejudicando, como se tem bem notado, os próprios interesses do agronegócio, a médio e longo prazo, uma vez que produtos que destroem a floresta, o clima e os povos originários sofrem boicotes e sanções. E a crise climática certamente compromete o futuro de todos, não só dos filhos e netos dos empresários imediatistas, mas da geração destes mesmos, ainda que ameace mais as populações pobres, que não a causaram e vivem em áreas de risco.
O Ecovirada ficará de olho nos desdobramentos, isto é, no julgamento no STF sobre o marco temporal, quando ele for retomado, e na eventual tramitação do PL 490 na câmara e no senado.
Enquanto isso, como podemos nos posicionar e influir no processo todo?
Conhecendo-o, bem como sabendo quem tem se posicionado politicamente sobre ele; elegendo presidente, governadores e deputados que lutem na direção que julgamos correta. É bom conferir o ideário de seus candidatos quanto a isso nas próximas eleições.
É bom também acompanhar as invasões que têm rapidamente degradado as terras em que vivem os povos indígenas, buscando brechas para protestarmos e conhecendo ações que têm procurado conter esse assalto. A pressão da sociedade civil é fundamental.
Rosie Mehoudar