O garimpo que destrói os Yanomami e as terras brasileiras
Chama a atenção o total descaso do governo federal quanto às decisões da Justiça Federal para a retirada do garimpo de dentro das terras Yanomami:
“A Justiça Federal em Roraima determinou nesta segunda-feira (23) que o governo federal retome ações para a retirada de milhares de garimpeiros que estão na Terra Indígena (TI) Yanomami, a maior do Brasil. A decisão obriga o governo Jair Bolsonaro (PL) a apresentar um novo plano, em caráter emergencial, para retirada dos garimpeiros, em razão do descumprimento de decisões judiciais anteriores.”
O primeiro parágrafo do artigo que o Ecovirada repercute aqui, publicado na Folha de São Paulo em 24 de maio de 2022, sintetiza o drama atual de um genocídio brasileiro dos povos indígenas que começou em 1500, apoiado pelos governos locais e federais. Foi legalmente contido pela Constituição de 1988, isto é, após 488 anos de tortura e dizimação (um exemplo pode ser lido neste artigo da BBC). Mesmo assim, a sede de lucro dos setores agropecuários e extrativistas encontrava modos de burlar a constituição, o que se intensificou no Governo Temer, em 2017.
Agora, o plano de governo bolsonarista pretende mudar a constituição, autorizando novamente a lógica da expropriação das terras indígenas, em nome de um progresso que nos põe frente a frente com o limite imposto pela natureza. “Degradem assim a terra e a crise climática decorrente eliminará a humanidade”, como que nos diz a natureza.
Diferentes projetos de lei tramitam no congresso, com o apoio da bancada ruralista, no sentido de liberar a mineração e o agronegócio em terras indígenas, como se pode ver aqui, num dos artigos do Ecovirada sobre os PLs.
Enquanto o governo atual não consegue legitimar legalmente suas aspirações, ele simplesmente ignora leis e multas. O crime deveria ser punido rapidamente, mas não é. A punição encontra toda sorte de empecilhos e blindagens. A eleição de um novo governo terminaria com esses empecilhos, e isso é um motivo a mais, e bastante forte, para as articulações de um possível golpe do governo atual, caso ele não se reeleja.
“Projeto de Nação”
Curiosamente, o Projeto de Nação publicado no dia 19 de maio de 2022 pela aliança governista, que almeja reter o poder até ao menos 2035, formula a tensão entre (1) o extrativismo, a agropecuária, a piscicultura (desportiva e para os mercados interno e externo) sem mais o obstáculo dos indígenas e (2) a possibilidade de essas atividades se darem de forma sustentada.
Como não destruir a galinha dos ovos de ouro é a pergunta implicada no texto (p. 83-85), seja nas diretrizes da exploração da Amazônia, ou nos obstáculos a ela. O tamanho do impacto do desmatamento sobre o clima, tão denunciado pelos cientistas da área, é porém posto em questão pelo documento (p. 84).
Uma das diretrizes da exploração da Amazônia é:
“Implantar o Zoneamento Econômico e Ecológico (ZEE) Regional e remover as restrições da legislação indígena e ambiental, que se conclua serem radicais, nas áreas atrativas do agronegócio e da mineração.” (p. 83)
Um dos “óbices” (obstáculos) à exploração são justamente as tribos isoladas (protegidas pela atual legislação):
“Isolamento e abandono da população nativa.” (p. 85)
A destruição de um povo que faz obstáculo a interesses econômicos imediatistas, oriunda da lógica colonial brasileira – e combatida a duras penas pelo humanismo ao longo de séculos, até chegarmos à constituição de 1988 –, é re-proposta pelo atual governo com toda a cara de pau. Ou melhor, com um verniz de enganosa racionalidade ou bondade: haveria proteções indígenas e ambientais “radicais” (???); a população nativa estaria “abandonada”.
O raciocínio comumente dado pelo presidente é: eles (os indígenas) que façam parte do progresso da nação! O que implica: eles que se assalariem no agronegócio, se houver alguma vaga; saiam de suas terras e andem para a cidade; percam seu modo de vida, associado a ritos e a uma espiritualidade própria – aliás pouco respeitada por algumas alas evangélicas. Eles que morram (paciência!) em contato com novos vírus, como é o caso das tribos isoladas quando o homem branco se aproxima delas, ainda mais se de maneira descuidada e agressora de seu meio.
O que toda a ciência tem sim provado é que o modo de exploração econômica que se pratica na maior parte do mundo está arrastando a humanidade para o abismo em poucos anos. A proposta indígena, pelo contrário, tem preservado o clima e a vida na terra, e tem muito a nos ensinar.
O egocentrismo não permite que se componha o próprio interesse com o dos outros povos e singularidades, troca que pode surpreender com benefícios para todos.
Interdependência
No fim das contas, economia, política, psicanálise (evidenciando como o psiquismo funciona, em suas perversões ou busca de acerto), ética, cultura, filosofia, espiritualidade e educação caminham de modo interdependente, como bem mostra Edgar Morin e sua teoria da complexidade, ou como já bem mostravam muitos sistemas filosóficos há milênios.
A matéria ela mesma porá um freio ao delírio da independência na exploração do homem pelo homem, ou da natureza pelo homem. O preço a pagar é alto, e vale continuarmos por todas as brechas o esforço civilizatório. Por mais que possa haver muitas terras espirituais (ou uma só), procurar trazer o Éden para esta nossa terra, ou procurar que ela o reflita, é nosso compromisso.
Rosie Mehoudar, 25/05/2022
Foto: Cláudia Andujar, Opiq+theri, Perimetranorte – da série Sonhos Yanomami, 2002