Sertão do Nordeste: um deserto em 25 anos?

Em 9 de junho de 2016, a revista Theoretical and Applied Climatology publicou um trabalho de autoria de José A. Marengo, Roger Rodrigues Torres e Lincoln Moniz Alves, intitulado “Drought in Northeast Brazil – past, present, and future” (pp. 1-12, veja: http://link.springer.com/article/10.1007/s00704-016-1840-8). O trabalho foi divulgado e comentado por Peter Moon, na Agência Fapesp (3/X/2016) e republicado pelo site Outras Mídias. Crisálida soma-se a esse esforço de divulgação, replicando abaixo o artigo de Peter Moon. 

O trabalho de Marengo, Rodrigues Torres e Moniz Alves tem por pano de fundo diversos estudos sobre a crescente desertificação do NE brasileiro. O Instituto Nacional do Semiárido (Insa), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, afirma que “o Semiárido brasileiro (…) é considerado uma das maiores áreas do mundo susceptíveis ao processo de desertificação”. Dez anos atrás, o Atlas das áreas susceptíveis à desertificação do Brasil, organizado por Marcos Oliveira Santana (MMA, Secretaria de Recursos Hídricos, Universidade Federal da Paraíba, 2007), já afirmava que o processo de desertificação em curso no Semiárido e em áreas adjacentes afeta os nove Estados do Nordeste, além do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo. “Desse total”, constatava o Atlas, “180 mil km2 já se encontram em processo grave e muito grave de desertificação, concentrados principalmente nos estados do Nordeste, que têm 55,25% do seu território atingido em diferentes graus de deterioração ambiental”. 

Um novo mapeamento publicado em 2013 pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Universidade Federal de Alagoas (Lapis), sob coordenação de Humberto Barbosa, mostra uma piora da situação. Em 2013, a região Nordeste tinha 230 mil km2 (contra 180 mil km2 em 2007) de terras atingidas pela desertificação em graus “grave” ou “muito grave”. Ainda segundo Humberto Barbosa, “fica evidente que as áreas onde o solo e a vegetação não respondem mais às chuvas estão mais extensas. Em condições normais, a vegetação da Caatinga brota entre 11 e 15 dias depois da chuva. Nestas áreas, não importa o quanto chova, a vegetação não responde, não brota mais” (citado por Cleide Carvalho, “Desertificação já atinge uma área de 230 mil km² no Nordeste”. O Globo, 9/VII/2013). 

Marengo, Rodrigues Torres e Moniz Alves afirmam no presente trabalho que:

“The drought affecting the Northeast from 2012 to 2015 (…) has had an intensity and impact not seen in several decades and has already destroyed large swaths of cropland, affecting hundreds of cities and towns across the region, and leaving ranchers struggling to feed and water cattle. Future climate projections for the area show large temperature increases and rainfall reductions, which, together with a tendency for longer periods with consecutive dry days, suggest the occurrence of more frequent/intense dry spells and droughts and a tendency toward aridification in the region. All these conditions lead to an increase in evaporation from reservoirs and lakes, affecting irrigation and agriculture as well as key water uses including hydropower and industry, and thus, the welfare of the residents”.

De fato, os reservatórios e demais corpos de água do NE estão secos ou na iminência de secarem. Segundo um levantamento do G1 (“Seca coloca quase 1,1 mil cidade em situação de emergência no país”, 5/X/2016, em rede):

“Ao menos 1.083 municípios do país, além do Distrito Federal, estão em situação de emergência por conta da seca ou da estiagem (…). Em cinco dos 15 estados afetados, o cenário atinge mais da metade dos municípios – No Rio Grande do Norte, 90% estão em emergência. O levantamento leva em conta os municípios que decretaram emergência e, posteriormente, tiveram tal situação reconhecida pelos governos estaduais, o que garante o acesso a recursos desses entes públicos. (…) O Nordeste é a região mais afetada. (…) A represa de Sobradinho, maior reservatório de água do Nordeste, enfrenta o pior cenário em 85 anos, e pode zerar até o fim deste ano, segundo o ministro de Minas e Energia, Fernando  Bezerra Coelho. Atualmente, o índice está em 10,35%.

 A situação do NE do Brasil insere-se num quadro de aridificação e desertificação que atinge outras regiões do planeta. Assim, Richard Seager afirma que no Sudoeste dos EUA “os modelos mostram uma aridificação progressiva (…). Se forem exatos, então o Sudoeste deverá enfrentar uma seca que se torna permanente” (citado por S. Cypel, “Une sécheresse historique aux Etats-Unis”. Le Monde, 19/VII/2012). 

Esse prognóstico é reiterado por um trabalho publicado em fevereiro de 2015 na revista Science Advances (cf. COOK, Benjamin I., AULT, Toby R., SMERDON, Jason, “Unprecedented 21st century drought risk in the American Southwest and Central Plains”, 1/II/2015), segundo o qual:

“No Sudoeste e nas Planícies Centrais do Oeste norte-americano, prevê-se que as mudanças climáticas aumentem a gravidade da seca nas próximas décadas. (…) Nossos resultados apontam para um futuro notavelmente mais seco, muito além da experiência contemporânea dos sistemas naturais e humanos na América do Norte, condições que podem apresentar um desafio importante para a adaptação”.

Como afirma Marengo, abaixo citado, há um vínculo indissociável entre aumento das secas no NE brasileiro e o desmatamento, que atinge agora um novo patamar com o avanço do agronegócio sobre o que resta das formações florestais do Cerrado, da Caatinga e da Mata Atlântica no chamado MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

(Luiz Marques)

 

A seca atual que aflige o Nordeste iniciou em 2012 e se intensificou desde então. Ela já dura cinco anos e é considerada a mais severa em várias décadas. A intensidade e a persistência da atual estiagem podem ser indícios de que os extremos da variabilidade climática já começaram a cobrar a sua fatura no Nordeste brasileiro. E a conta pode aumentar se esses extremos passarem a ser mais frequentes e intensos em cenários de mudanças climáticas nas próximas décadas.

“As projeções de clima geradas pelos modelos climáticos sugerem que, daqui para a frente, as estiagens mais severas e prolongadas tenderão a ser a regra, não mais a exceção, porém a incerteza de ter este cenário futuro ainda existe”, afirma o hidrologista e meteorologista José Antonio Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo.

Estas são algumas das conclusões do artigo “Drought in Northeast Brazil – past, present, and future”, publicado em Theoretical and Applied Climatology, assinado por Marengo e pelos meteorologistas Roger Rodrigues Torres, da Universidade Federal de Itajubá, e Lincoln Muniz Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A pesquisa utilizou a ferramenta PULSE-Brazil (Platform for Understanding Long-term Sustainability of Ecosystems), desenvolvida no âmbito do projeto Impact of climate extremes on ecosystem and human health in Brazil (PULSE-Brazil), apoiado pela FAPESP e pelo Natural Environment Research Council (NERC), do Reino Unido (Leia mais sobre a pesquisa em agencia.fapesp.br/19116/).

Os pesquisadores basearam o estudo em projeções climáticas estimadas a partir da aplicação ao Nordeste dos modelos climáticos globais do 5º Relatório de Avaliação (AR5) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2014.

A seca é um fenômeno natural no Nordeste. Há relatos da sua incidência desde o século 16, ou seja, desde o início da colonização do país. O clima hoje é semiárido, mas no futuro poderá não ser mais. Em outras palavras, o sertão pode se tornar uma zona árida e favorecer um processo de desertificação na região, afirma Marengo.

A época das chuvas no Nordeste acontece entre os meses de março e maio. É nesse período que a precipitação fornece a água que irá ser armazenada nos milhares de cisternas espalhadas pela região, água guardada pelos pequenos agricultores para os meses de estiagem.

Atualmente, durante os meses chuvosos não chove todos os dias. Há intervalos sem precipitação que duram de cinco a seis dias. O que as projeções indicam é que, durante o período chuvoso, esses intervalos “secos” tenderão a ser mais numerosos e mais longos. No futuro, os “veranicos” poderão se estender por até 40 dias. Ou seja, a quantidade de precipitação nos meses chuvosos tenderá a ser menor do que a atual.

Isso irá impactar diretamente na quantidade de água que poderá ser armazenada no solo e nas cisternas. Menos dias de chuva se traduzem em menos água nas cisternas e no solo que tende a ressecar, com prejuízo para a vegetação do semi-árido, adaptada a um volume sazonal de chuvas que se torna mais deficiente.

De acordo com as projeções, menos chuva significa também dias mais quentes. Esse é um processo que já vem acontecendo há muito tempo. De acordo com Marengo, as projeções passadas indicam que a temperatura média no Nordeste já aumentou 0,8 grau centígrado entre 1900 e 2000.

Foram feitas projeções para estimar as alterações no índice de chuvas e nas temperaturas médias do Nordeste tanto ao longo do século 20 quanto até o final do século 21. O aquecimento vai aumentar. Na melhor das hipóteses, as projeções apontam para uma elevação nas temperaturas médias de outros 2 graus centígrados até 2040, o que poderia também estar acompanhado de períodos secos mais intensos e longos.

No pior dos cenários, o aumento das temperaturas prosseguirá até pelo menos o fim do século 21. Isso fará com que, em 2100, as temperaturas nordestinas sejam em média até 4,4 graus superiores às atuais. Nestas condições, se medidas governamentais sérias e imediatas não forem tomadas para, por exemplo, conter os desmatamentos, o sertão pode virar um grande deserto, alerta Marengo.

“As decisões da COP-21 de Paris em relação à redução nas emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo poderiam ajudar a reduzir o aquecimentos a níveis inferiores a 2º C nas próximas décadas, e isso poderia amenizar os impactos do aquecimento global, pois com aquecimento projeto de 4.4 C ate 2100 na região podem trazer consequências desastrosas para a população do Nordeste”, diz Marengo.

Com menos chuvas e mais calor ao longo do ano, a vegetação típica da caatinga tenderá a ser gradualmente substituída pelas cactáceas, que são vegetação típica de desertos. O impacto disso para a agricultura, principalmente a familiar e de subsistência, será incomensurável.

O Nordeste ocupa 18% do território nacional. Ali vivem 53 milhões de pessoas. Segundo Marengo, o semiárido nordestino já é a região seca mais densamente povoada do planeta, com 34 habitantes por quilômetro quadrado. As mudanças climáticas cobrarão do Nordeste um preço salgado. Sera inevitável? “Hoje só temos uma certeza”, diz o pesquisador. “A de que no futuro os períodos de seca serão mais longos e mais quentes.”

O artigo Drought in Northeast Brazil – past, present, and future, assinado por Marengo, Roger Rodrigues Torres, Lincoln Muniz Alves e publicado em Theoretical and Applied Climatology pode ser lido em http://link.springer.com/article/10.1007/s00704-016-1840-8.

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