Há muito anos o Brasil importa resíduos recicláveis de outros países. O material vem principalmente dos Estados Unidos, da China e de vários países da América Latina, sob a forma de papel, plástico, vidro e metais. Os números variam a cada ano, mas os volumes são relevantes: entre 2017 e 2024, o Brasil importou centenas de milhares de toneladas de resíduos, sobretudo de plástico, papel, sucata metálica e vidro. Só em 2024 foram 44 mil toneladas.
O principal argumento favorável à prática é econômico. Os materiais importados seriam matéria prima para novos produtos. Algumas indústrias brasileiras alegam precisar importar resíduos porque a coleta seletiva nacional é insuficiente para abastecer a demanda. No caso do papel, por exemplo, aparas de fibra longa vindas do exterior são usadas como complemento da produção local. Já na indústria metalúrgica, a sucata importada muitas vezes chegava a preços mais competitivos do que a obtida internamente.
Por outro lado, organizações ambientais e representantes dos catadores sempre denunciaram a contradição: enquanto toneladas de resíduos recicláveis brasileiros eram descartadas em lixões e aterros, o país continuava a gastar recursos para importar o que poderia ser coletado e reaproveitado localmente.
A lei de janeiro de 2025
Em 6 de janeiro de 2025, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.088/2025, proibindo a importação de resíduos sólidos. A medida buscou alinhar o país a compromissos internacionais, como a Convenção da Basileia, e ao mesmo tempo fortalecer a cadeia de reciclagem nacional.
A lei, contudo, estabeleceu exceções. Foram autorizadas importações em casos específicos, como:
- resíduos utilizados para a transformação de minerais estratégicos;
- certas sucatas metálicas;
- aparas de papel de fibra longa;
- logística reversa de produtos nacionais previamente exportados (ou seja, o retorno de resíduos brasileiros, que foram gerados a partir de produtos nacionais vendidos para fora. Esse retorno é parte de uma cadeia de responsabilidade ambiental do fabricante (a chamada logística reversa). Por exemplo, uma empresa brasileira exporta baterias de lítio para a América Latina. Depois de alguns anos de uso, essas baterias ficam inutilizáveis e precisam ser descartadas. A empresa pode importar essas baterias para tratá-las em suas próprias instalações no Brasil, de acordo com normas ambientais. Isso não é considerado “importação de lixo estrangeiro”, mas sim cumprimento da logística reversa de produtos brasileiros).
A sanção foi recebida como um avanço, mas o setor de reciclagem e os catadores mantiveram cautela diante das brechas abertas pelas exceções.

Imagem: @bemblogado.com.br
O decreto de maio: ajuste na rota
Em maio de 2025, o governo publicou o Decreto nº 12.451, que revogou o decreto anterior (mais permissivo) e estabeleceu novas regras. A norma detalhou quais resíduos não poderiam mais entrar no Brasil, como plásticos, PET, papel, vidro e parte dos metais, permitindo apenas importações em condições técnicas específicas e sob cotas.
O decreto também inovou ao garantir participação social: catadores, cooperativas e fóruns de economia circular foram consultados na formulação das regras, garantindo que o impacto sobre a base da reciclagem fosse considerado.
O papel dos catadores
No Brasil, os catadores de materiais recicláveis representam a linha de frente da gestão de resíduos. Estima-se que cerca de 800 mil pessoas dependem diretamente da atividade de coleta, separação e venda de recicláveis.
Esses trabalhadores desempenham um papel ambiental essencial: evitam que toneladas de resíduos acabem em aterros ou cursos d’água, reduzem a pressão sobre recursos naturais e promovem economia circular.
Contudo, enfrentam vulnerabilidade social, informalidade e concorrência desleal quando resíduos importados entram no país a preços baixos, diminuindo a demanda pelo material coletado localmente.
Reações e perspectivas
Os catadores celebraram a mudança trazida pelo decreto de maio. Para eles, a legislação reduz em mais de 90% as importações de materiais como plástico PET, papelão, vidro, alumínio e ferro — justamente os itens que compõem a maior parte de sua renda.
Nas palavras de suas lideranças, trata-se de uma vitória histórica: “Nada sobre nós, sem nós”. O reconhecimento da centralidade dos catadores nas políticas públicas é visto como passo fundamental para que o país avance em direção a uma economia verdadeiramente circular e justa.
Conclusão
A decisão de restringir a importação de resíduos coloca o Brasil diante de um desafio e de uma oportunidade. O desafio é fortalecer a coleta seletiva, a infraestrutura de reciclagem e a valorização do trabalho dos catadores. A oportunidade é transformar um setor historicamente marginalizado em motor de desenvolvimento sustentável, geração de emprego e justiça social.
Se o país conseguir redirecionar os recursos antes destinados à importação de lixo para apoiar catadores e cooperativas, o ganho será duplo: menos resíduos descartados de forma inadequada e mais dignidade para quem dedica a vida a dar novo valor ao que normalmente chamamos de lixo.
Mas devemos ter presente que a reciclagem não é o meio para fazer com que o mundo saia da crise da poluição plástica. Um estudo da prestigiosa revista The Lancet, publicado em agosto de 2025, adverte que “está claro que o mundo não conseguirá sair da crise da poluição plástica por meio da reciclagem”.
Os principais motivos são:
. mesmo nos países mais avançados, menos de 10% do plástico é efetivamente reciclado (o resto é queimado liberando gases tóxicos, enviado para aterros, ou exportado para países mais pobres).
. plásticos mistos, sujos ou de baixa qualidade, são quase impossíveis de reaproveitar.
. o processo de reciclagem também polui, consumindo energia, água e produtos químicos.
. o transporte, a lavagem e a fusão de materiais emitem gases de efeito estufa e podem gerar resíduos tóxicos. Assim, parte da poluição apenas muda de forma — do lixo sólido para a poluição atmosférica ou química.
. muitos materiais se degradam ao serem reciclados. O plástico só pode ser reciclado poucas vezes antes de perder qualidade. Assim, ele acaba inevitavelmente virando lixo, apenas com um pequeno atraso no tempo.
. a reciclagem depende de um mercado que nem sempre existe. Quando o petróleo está barato, o plástico virgem custa menos e as empresas preferem o novo. Ou seja, o sistema econômico desestimula a reciclagem real.
E, principalmente, porque a reciclagem não ataca a raiz do problema: a produção e o consumo. Reciclar é lidar com o efeito, não com a causa. O problema central é o excesso de produção, as embalagens de uso único, os produtos que se tornam obsoletos rapidamente, e uma lógica de mercado baseada em vender sempre mais.
Enquanto o design industrial não for reformulado para que produtos durem mais e sejam mais facilmente desmontados e reaproveitados, enquanto a cultura do descarte e do lucro a qualquer custo continuar, a reciclagem será só uma solução paliativa.
Imagem inicial: @ecobiopolimeros.com.br
Maristela Jardim Gaudio – Outubro 2025

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