A comunidade científica vem advertindo que quatro dos nove “limites de segurança planetários”, tal como definidos desde 2009 pelo Centro de Resiliência de Estocolmo, já foram ultrapassados em decorrência da ação deletéria dos homens sobre o meio ambiente.
Esses quatro limites de segurança planetários já ultrapassados são: 1. uso de fertilizantes; 2. declínio catastrófico da biodiversidade; 3. mudanças climáticas e 4. desmatamento, degradação e fragmentação da manta florestal.
Os dois primeiros limites ultrapassados já estão no nível de “alto risco” (em vermelho). O terceiro e o quarto eram qualificados em 2015 como “risco crescente” (em amarelo), conforme mostra a figura abaixo.
Cf. STEFFEN, Will et al. “Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet”. Science, 15/I/2015.
O que de imediato se nota é que esses quatro limites ultrapassados estão diretamente associados à expansão agropecuária sobre as florestas, segundo o paradigma da transformação globalizada dos alimentos em commodities.
Embora global, o Brasil, pela dimensão de suas florestas e pela insanidade com que as vem destruindo, tem uma responsabilidade maior nesse processo. E aqui o Estado-Corporação brasileiro – com sua bancada ruralista no Congresso Nacional, com seu Ministério da Agricultura ocupado por grandes desmatadores (Kátia Abreu e Blairo Maggi), com o BNDES-Par, financiador e sócio das grandes corporações do agronegócio e, finalmente, com sua acolhida às grandes corporações internacionais (Monsanto, Cargill etc) – é certamente o principal motor do ecocídio que está intoxicando os organismos do planeta e nos impelindo com velocidade crescente a um colapso socioambiental de dimensões imponderáveis.
Desde 1500, a destruição da biosfera e a matança e brutalização dos povos da floresta são a constante definidora de nossa história. Mas esse processo destrutivo ganhou novo ímpeto a partir de 1964, ao avançar sobre a Amazônia e o Cerrado, e ainda outra aceleração com os sucessivos governos civis, atingindo agora um novo clímax com o governo Temer.
Nada e ninguém pode se interpor a essa máquina destruidora sem ser objeto de ataques furibundos da grande coalizão do desmatamento, da qual participam inclusive partidos de esquerda, como o PCdoB, responsável pela redação do novo Código Florestal e pela anistia aos desmatadores que este garantiu.
De modo que, quando uma singela Escola de Samba resolve cantar as atrocidades cometidas contra os índios do Xingú, ocorre o que Sonia Bone Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), analisa com grande lucidez no artigo abaixo.
Luiz Marques
Quando a escola de samba Imperatriz Leopoldinense divulgou em janeiro seu enredo de 2017, “Xingu, o clamor que vem da floresta”, um discurso de ódio emergiu da terra. Ataques raivosos aos cariocas, ao Rio e ao Carnaval, além do tradicional e triste racismo contra os povos indígenas, afloraram nas redes sociais e até em certos canais de televisão.
Quem está no ritmo de levar alegria ao Sambódromo levou um susto. Para o indígena, infelizmente isso não é novidade. Esta é somente mais uma face dos ataques consistentes desferidos sobre nosso modo de vida e nossos direitos conquistados na Constituição de 1988.
A lei suprema do Brasil assegura o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Conhecida como “Constituição Cidadã”, é referência mundial no que diz respeito aos cuidados com o ambiente e com os direitos humanos.
Sob a sua inspiração, o Brasil assumiu importantes compromissos internacionais, sendo signatário, por exemplo, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração dos Povos Indígenas da ONU, e ganhou admiração internacional ao reconhecer mais de 110 milhões de hectares de terras indígenas (TIs).
Só que, desde sua promulgação, a Constituição sofre ataques intensos dos desgostosos, por meio de propostas de emendas constitucionais, como tiros desferidos incessantemente: PEC, PEC, PEC.
É o caso da PEC 215, escrita para transferir a atribuição de demarcar terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo, no qual a bancada ruralista ocupa hoje desproporcionais 40% das cadeiras. Imagine o que sobraria dos indígenas e da natureza.
Em 2017, outro ataque apareceu, e agora vindo da Presidência da República: uma portaria em 18 de janeiro, publicada pelo Ministério da Justiça do então ministro Alexandre de Moraes (esse que vai agora para o Supremo Tribunal Federal indicado pelo presidente Temer), instituiu um grupo para rever processos de demarcação de terras indígenas feitos pela já enfraquecida Funai.
O movimento indígena e o Ministério Público Federal reagiram, e a portaria foi revogada. Mas outra foi publicada em seu lugar, e a ameaça continua no ar, pois o grupo criado se mantém e decisões de natureza política podem prevalecer sobre conclusões técnicas.
Além disso, essa portaria abre espaço para uma série de medidas que atentam contra os direitos indígenas. A principal é a tese do “marco temporal”, que na prática significaria que só teríamos direito às terras ocupadas até outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição – mesmo que tivéssemos sido expulsos delas com violência, como foi reconhecido oficialmente pelo Estado brasileiro no relatório da Comissão Nacional da Verdade.
É importante deixar claro: segundo o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, “os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente.”
“Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios.”
Sendo assim, rever demarcação de terras indígenas (TIs), como quer a PEC 215 e também a portaria do ministro Alexandre de Moraes, é incompatível com a Constituição Cidadã e atinge em cheio seu espírito, garantidor da própria democracia brasileira: os direitos fundamentais dos grupos minoritários ou daqueles menos influentes econômica e politicamente, que não podem ser alvo de violação, ainda que maiorias de ocasião queiram.
O discurso de ódio que mirou a Imperatriz Leopoldinense segue uma lógica de supressão de direitos, que atendem a negociações e acordos firmados às escondidas, e que buscam retroceder as conquistas dos povos indígenas brasileiros.
Para piorar, o tiro pode sair pela culatra e atingir a eles próprios e a todo o País. Terras indígenas servem como barreira ao desmatamento, pela forma tradicional de viver. Desmata-se dez vezes menos dentro das TIs do que fora e, por isso, elas ajudam a regular o clima do planeta. Isso é bom para todo mundo, inclusive para o próprio produtor rural.
Por outro lado, quanto mais se desmata, pior o clima fica. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o grande bloco de floresta que existe dentro do Parque Indígena do Xingu serve como um regador e um ar condicionado natural para a produção do lado de fora, onde a grande maioria da vegetação não existe mais.
Já o estudo “Economia da mudança do clima no Brasil” (Margulis, Dubeux e Marcovitch, 2011) mostra que a perda da produção média de soja no País por causa das mudanças climáticas pode chegar a 20% até 2050. Um prejuízo de 6 bilhões de reais por ano.
Um terço da Amazônia está sob nossa proteção. Essa área armazena um estoque de 13 bilhões de toneladas de carbono na forma de floresta. Desassistida, nada sobrará.
Logo, vai aqui o nosso alerta: expulsar o índio de sua terra equivale a matar a galinha dos ovos de ouro do Brasil. Mexer com o índio é subtrair direitos constitucionais pelos quais o país é reconhecido. É mexer com o clima, o que enfraquece a economia e piora a vida de todo mundo.
A Imperatriz Leopoldinense talvez não tivesse ideia de onde estava se metendo quando escolheu falar do Xingu, mas seguiu o caminho certo. Porque hoje defender o índio brasileiro é defender o futuro do país.
*Sonia Bone Guajajara é coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).