EDUCAÇÃO AMBIENTAL E PLANTAS MEDICINAIS EM DIFERENTES NÍVEIS DE REALIDADE
Nos vários espaços onde a Educação Ambiental é realizada atualmente, como escolas, universidades, comunidades, empresas e unidades de conservação, podemos perceber que ela acontece basicamente em três dimensões interrelacionadas: a teórica, a prática e a do imaginário.
Cada uma dessas dimensões, se abordada separadamente, revela aspectos muito valiosos, mas também comporta limitações em sua abrangência, se considerarmos a complexidade com que as questões socioambientais se apresentam.
Nesse sentido, proponho uma breve reflexão sobre o aumento da interação entre esses níveis, por meio da abordagem transdisciplinar, e suas possíveis contribuições para o campo da Educação Ambiental em geral e, em especial, para os trabalhos que envolvam as plantas medicinais.
Teoria, prática e imaginário
A princípio, a integração entre teoria, prática e imaginário parece claramente interessante, pois a teoria sem uma perspectiva de aplicação prática, corre o risco de se tornar pura abstração; a prática sem a teoria pode perder o seu sentido e a sua direção; a teoria e a prática sem o imaginário podem tornar-se áridas e perder o seu encantamento.
Uma segunda questão fundamental em relação a essas dimensões é a de não as considerar desvinculadas de seus contextos sócio-históricos, ou seja, além de procurar integrar as dimensões é preciso que aconteçam reflexões sobre o enraizamento das teorias, das práticas e das abordagens do imaginário em escolhas filosóficas, epistemológicas e políticas. Dessa forma, essas três dimensões não são consideradas como entidades abstratas, mas sim como escolhas, intencionais ou não, dos/das educadores/as ambientais, fundamentadas em visões de mundo e suas consequentes perspectivas de ação.
Se procurarmos observar como anda a interação entre essas três dimensões e o sentido dado a elas, poderemos verificar, em geral, uma tendência à dissociação:
- Nos cursos de formação de educadores ambientais e nos materiais utilizados em Educação Ambiental, há uma tendência à hipervalorização da teoria instituída, ou seja, aquela que é formulada a partir de um conhecimento considerado pelo meio acadêmico ou científico, em detrimento da sabedoria prática, adquirida no cotidiano dos sujeitos ou de aspectos da dimensão do imaginário. Essa teoria possui, em geral, conteúdos fortemente ligados às ciências biológicas e à ecologia e pouco relacionados às realidades sócio-históricas dos contextos onde se inserem.
- Nas ações em Educação Ambiental, as atividades práticas são privilegiadas, em geral, em detrimento da teoria e sem que sejam explicitadas as bases conceituais que fundamentam essas práticas. Essas ações podem ser de intervenção na realidade, mas não necessariamente.
- No campo do imaginário, há uma tendência às vivências mais subjetivas, por meio de dinâmicas e atividades artístico-culturais e lúdicas, sem que haja necessariamente um desdobramento mais efetivo, que ultrapasse a transformação pessoal, na direção das transformações socioambientais mais abrangentes.
- Cabe aqui destacar que, se nos pontos anteriores utilizei as expressões: “em geral”, “tendência”, “mais fortemente”, foi porque reconheço que, paralelamente à dissociação, há também perspectivas integradoras: teorias que transitam entre os saberes científicos e aqueles enraizados em tradições populares e culturais; práticas que explicitam as teorias nas quais estão fundamentadas; e trabalhos com o imaginário, que envolvem as demais dimensões.
Além do convite à reflexão sobre diferentes dimensões da Educação Ambiental, direciono o foco para um universo que tem despertado o interesse de educadores/as ambientais, em geral relacionado a projetos de implantação e manutenção de hortas: as plantas medicinais.
Plantas medicinais e os níveis de realidade
A utilização de plantas com fins de cura confunde-se com a história da humanidade e acompanha sua trajetória histórica e cultural. A descoberta de propriedades curativas deu-se, a princípio, no nível prático da experiência, mesclado por componentes do imaginário.
No Brasil, esse conhecimento aglutinou as práticas indígenas, no trato com a flora nativa, que incluía lendas sobre o surgimento das espécies e rituais para a sua utilização, tendo como objetivo não apenas a cura física, mas também emocional e espiritual. Além disso, incluiu aquelas introduzidas por europeus e africanos, também cercadas de histórias e aspectos místicos, consolidando um conjunto de sabedoria terapêutica tradicional, até começar a acontecer uma mudança significativa nessa trajetória, advinda da industrialização.
Dessa forma, começam a se evidenciar níveis diferentes de percepção do universo das plantas medicinais: um popular ou tradicional, voltado basicamente para o resultado e outro, científico, que inclui uma metodologia padronizada e replicável, que transforma a planta em medicamento.
Nesse sentido, podemos observar o circuito entre teoria, prática e imaginário se realizando de forma diferenciada nos saberes popular e científico.
No percurso do saber popular, em geral, o que importa são os resultados, independentemente da identificação e conhecimento dos elementos e propriedades. O conhecimento e o preparo são de uso prático, transmitidos através das gerações, na forma de chás, xaropes, tinturas, aluás, inalação, gargarejos, banhos, cataplasmas, maceração, pós, pomadas e podem ser acompanhados por apelos ligados ao imaginário, como simpatias, rituais ou lendas.
No percurso científico, o importante é o controle do processo, desde a fabricação até o uso. Nesse caso entram em jogo as pesquisas e todo o conhecimento científico ocidental acumulado e saem completamente de cena as associações ligadas ao imaginário, com exceção daquelas relacionadas à crença no poder da ciência. Além disso, o poder autônomo de resolver situações cotidianas simples de desequilíbrios da saúde acaba por ser retirado das mãos das pessoas, sendo transferido ao sistema instituído e aos laboratórios. Nesse caso, os medicamentos são apresentados em formas muitas vezes difíceis de serem replicadas, como a das cápsulas, comprimidos ou soluções com aromas e sabores atraentes ao paladar. Além disso, estão sujeitos ao custo das patentes, mas que possuem a chancela da credibilidade e da eficiência.
A partir dessas constatações, fica evidente que as abordagens popular e científica pertencem a diferentes níveis ou campos de realidade, quer dizer, seus processos seguem leis diferentes, que parecem não se integrar. A sabedoria popular se apoia no nível prático e no do imaginário, já a sabedoria científica se apoia mais fortemente na teoria e nos experimentos, que a comprovem.
Do ponto de vista popular, toda a sistematização científica parece complicar as coisas, e, do ponto de vista científico, o conhecimento popular carece de precisão e comprovação. À luz da metodologia científica, o conhecimento científico pode substituir o popular. Em muitos casos foi isso que aconteceu ao longo da trajetória histórica do conhecimento popular das plantas medicinais e muita sabedoria transmitida apenas oralmente se perdeu pelo caminho, para dar lugar às fórmulas industrializadas e de difícil acesso.
É evidente que o aprimoramento do conhecimento que leve à cura é desejável, mas se, a partir do pensamento complexo, considerarmos a possibilidade de que aspectos contraditórios sejam simultâneos, poderemos admitir que a sabedoria popular sobre as plantas medicinais enriquecerá o leque de possibilidades das pesquisas científicas e essas poderão validar, fortalecer e aprimorar a sabedoria popular.
Em Educação Ambiental, se aos níveis da teoria e da prática acrescentarmos a simbologia, as histórias e as lendas que cercam o cultivo, o manejo e o uso dessas plantas, além da reflexão sobre a trajetória desses vários saberes, poderemos enriquecer ainda mais esse conhecimento, tornando-o um aliado para a religação das pessoas e comunidades à natureza.
No que se refere às plantas medicinais, a religação social à tradição, por meio da identificação do universo imaginário que as permeia, é fundamental para que se restabeleça a conectividade entre sociedade e natureza, porém de forma ressignificada pela ampliação e inclusão dos conhecimentos científicos.
Sem a devida valorização da tradição e do imaginário, descamba-se para a objetividade que desenraiza os saberes, tornando-os áridos e incompletos.
Algumas experiências em Educação Ambiental, relacionadas às plantas medicinais, que apresentam bons resultados em relação à integração de níveis de realidade têm sido as que partem da tentativa de identificação de redes de saberes. Esses saberes emergem em narrativas e práticas cotidianas, deixando fluir visões de mundo e tradições. Eles se situam em diferentes contextos e sugerem um trânsito entre teoria, prática e imaginário. A busca pela teoria surge como um apelo ao entendimento da realidade e à fundamentação da prática.
Dessa forma, a idealização de um trabalho com plantas medicinais precisa ser compartilhada pelo grupo que o levará adiante, sob pena de tornar-se um trabalho desvinculado da rotina cotidiana, seja em escolas, comunidades, empresas ou em outros espaços. É necessário que exista o diálogo entre os conhecimentos e profissionais das áreas de agronomia, ecologia, saúde e educação, entre muitas outras, além da circularidade entre teoria e prática, considerando-se também os saberes locais tradicionais e suas múltiplas manifestações.
Para acessar o artigo completo: http://32reuniao.anped.org.br/arquivos/trabalhos/GT22-5448–Int.pdf
Para aprofundar a temática abordada:
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Referências das imagens:
Ana Lacerda – acervo pessoal